O poeta e
o mundo
por Wislawa Szymborska
Wislawa Szymborska nasceu em 1923, no
vilarejo polonês de Bninie. Morava em Cracóvia desde os 8 anos. Levou uma vida
singela, sem grandes atropelos. Durante a Segunda Guerra, foi funcionária do
departamento de estradas de ferro. Mais tarde, trabalhou como secretária,
ilustradora e, durante décadas, como editora de uma revista cultural. Começou a
escrever poesia aos vinte e poucos anos. Em 1949, seu primeiro livro foi
censurado pelo regime comunista, que o considerou obscuro demais para as
massas. Talvez Szymborska tenha levado a sério a advertência, pois a obra que
viria a consagrá-la é de uma desafetação exemplar. A dicção é coloquial,
despojada de retórica e efeito poético. São poemas claros como água pura.
Mas é possível espantar-se com a água, e assim é
Wislawa Szymborska: ela se surpreende, seja com as miudezas da vida, seja com
os horrores da História. É uma poesia do assombro. Há um espanto de natureza
quase darwiniana, suscitado pelo fato de estarmos aqui - nós e não outros. Há o
que nasce da consciência de que ninguém está no centro de nada, de que o mundo
segue adiante sem o nosso testemunho. Quanto à História, Szymborska a enfrenta
sem abrir a guarda para sentimentalismos. O pior acontece, e será esquecido.
Em 1996, a poeta ganhou o Prêmio Nobel de
Literatura. Tinha 73 anos e era praticamente desconhecida fora da Polônia. Foi
talvez o único sobressalto de sua vida. No Brasil, Ana Cristina Cesar e Nelson
Ascher traduziram alguns de seus poemas. Regina Przybycien, professora da
Universidade Federal do Paraná, publicou na revista Oroboro uma pequena seleta
de traduções. piauí publica nove poemas traduzidos em conjunto por Sylvio Fraga
Neto e Danuta Haczyn´ska da Nóbrega; ele, a partir da tradução inglesa, ela, do
original polonês. O discurso de Wislawa Szymborska na Academia Sueca foi
traduzido do inglês por Rubens Figueiredo.
***
Dizem que a primeira frase de um discurso é
sempre a mais difícil. Bem, ela já ficou para trás. Mas tenho a sensação de que
as frases ainda por vir - a terceira, a sexta, a décima e assim por diante, até
a última linha - serão igualmente difíceis, pois tenho de falar sobre poesia.
Falei muito pouco sobre o assunto - quase nada, de fato. E sempre que falei me
veio a furtiva suspeita de que não sou muito boa nisso. Portanto, minha
palestra será bem curta. A imperfeição é mais fácil de tolerar em doses
pequenas.
Os poetas contemporâneos são céticos e
desconfiados até, ou talvez sobretudo, de si mesmos. Só com relutância
confessam publicamente ser poetas, como se tivessem um pouco de vergonha. Mas
em nossos tempos estrepitosos é mais fácil reconhecer nossos erros, ao menos se
estiverem atraentemente embalados, do que reconhecer os próprios méritos, pois
estes se mantêm ocultos mais no fundo, e nós mesmos nunca acreditamos muito
neles... Quando preenchem fichas ou batem papo com estranhos - ou seja, quando
não podem deixar de revelar sua profissão -, os poetas preferem usar o termo
genérico "escritor" ou substituir "poeta" pelo nome de
qualquer outro trabalho que façam, além de escrever. Burocratas e passageiros
de ônibus reagem com um toque de incredulidade e alarme quando descobrem que
estão tratando com um poeta. Creio que os filósofos enfrentam reação
semelhante. Contudo, estão numa posição melhor, pois na maioria das vezes podem
ornamentar seu ofício com algum tipo de título universitário. Professor Doutor
de Filosofia: isso sim soa mui¬to mais respeitável.
Mas não existem professores de poesia. Afinal de
contas, isso significaria que a poesia é uma ocupação que requer um estudo
especializado, exames regulares, ensaios teóricos com bibliografia e notas de
rodapé anexadas e, por fim, diplomas conferidos com pompa. E significaria, em
troca, que não basta encher páginas de poemas, mesmo os mais primorosos do
mundo, para tornar-se um poeta. O fator decisivo seria um pedaço de papel que
traz um selo oficial. Lembremos que o orgulho da poesia russa, o futuro
ganhador do Prêmio Nobel Joseph Brodsky, foi certa vez condenado ao exílio em
seu próprio país justamente com base nessa idéia. Chamaram-no de
"parasita" porque não possuía o certificado oficial que lhe
assegurava o direito de ser poeta.
Há muitos anos, tive a honra e o prazer de
encontrar com Brodsky. Notei que, de todos os poetas que eu conhecia, ele era o
único que gostava de se chamar de poeta. Pronunciava a palavra sem inibição. Ao
contrário: ele a falava com uma liberdade desafiadora. Isso devia ocorrer, é o
que me parece, por causa da lembrança das humilhações que sofreu na juventude.
Em países mais afortunados, onde a dignidade
humana não é agredida tão facilmente, os poetas almejam ser publicados, lidos e
compreendidos, mas fazem pouco, ou quase nada, para se situarem acima do
rebanho geral e da roda-viva do dia-a-dia. No entanto, ainda não faz tanto
tempo, os poetas se esforçavam para nos escandalizar com suas roupas
extravagantes e seu comportamento excêntrico. Tudo isso era só para encher os
olhos do público. Sempre chegava a hora em que os poetas tinham de fechar a
porta atrás de si, despir suas capas, seus penduricalhos e outras parafernálias
poéticas e enfrentar - em silêncio, com paciência, à espera de si mesmos - a
folha de papel ainda em branco. Pois, no final, é isso o que de fato conta.
Não é por acaso que filmes biográficos sobre
cientistas e artistas célebres são produzidos aos montes. Os diretores mais
ambiciosos tentam reconstituir de forma convincente o processo criativo que
gerou importantes descobertas científicas, ou o surgimento de uma obra-prima. E
se pode retratar certos tipos de atividade científica com algum sucesso.
Laboratórios, instrumentos diversos, máquinas complicadas em ação: tais cenas
podem prender o interesse da platéia durante algum tempo. E aqueles momentos de
incerteza - será que a experiência, realizada pela milésima vez com uma ínfima
alteração, produzirá por fim o resultado desejado? - podem ser dramáticos.
Filmes sobre pintores podem ser espetaculares, enquanto recriam todos os
estágios da evolução de um pintor famoso, desde o primeiro traço a lápis até a
pincelada definitiva. A música se expande nos filmes sobre compositores: os
primeiros compassos da melodia que soa nos ouvidos do músico emergem, no fim,
como uma obra madura em forma sinfônica. Claro, tudo isso é ingênuo, e não
explica o estranho estado mental popularmente conhecido como inspiração, mas
pelo menos existe algo para se olhar e se ouvir.
Mas os poetas são os piores. Seu trabalho,
inapelavelmente, nada tem de fotogênico. Alguém senta a uma mesa ou deita num
sofá enquanto olha imóvel para a parede ou para o teto. De quando em quando,
essa pessoa escreve sete linhas, só para riscar uma delas quinze minutos
depois, em seguida mais uma hora se passa, durante a qual nada acontece... Quem
agüentaria assistir a esse tipo de coisa?
Mencionei a inspiração. Poetas contemporâneos
respondem de forma evasiva quando lhes perguntam o que é isso, e se existe de
verdade. Não é que nunca tenham conhecido a bênção desse impulso interior. Só
que não é fácil explicar a uma outra pessoa aquilo que você mesmo não compreende.
Quando ocorre de me perguntarem sobre o assunto,
também me esquivo. Mas minha resposta é esta: a inspiração não é um privilégio
exclusivo de poetas e artistas. Existe, existiu, existirá sempre certo grupo de
pessoas a quem a inspiração visita. É formado por todos aqueles que
conscientemente escolheram sua vocação, e fazem seu trabalho com amor e
imaginação. Pode incluir médicos, professores, jardineiros - eu poderia fazer
uma lista de mais de cem profissões. Seu trabalho se torna uma aventura constante,
enquanto forem capazes de continuar a descobrir nele novos desafios.
Difi¬culdades e reveses nunca sufocam a sua curiosidade. Um enxame de questões
novas emerge de cada problema que eles solucionam. Seja lá o que for a
inspiração, ela nasce de um contínuo "não sei".
Não existem muitas pessoas assim. A maioria dos
habitantes da Terra trabalha para ganhar a vida. Trabalham porque têm de
trabalhar. Não escolhem este ou aquele tipo de trabalho por paixão; as
circunstâncias de suas vidas fizeram a escolha por eles. Trabalho sem amor,
trabalho maçante, trabalho cujo mérito consiste no fato de que outros nem isso
têm - aí está uma das mais penosas desventuras humanas. E não há sinal de que
os séculos vindouros produzirão qualquer melhora em relação a este estado de
coisas.
Assim, embora eu possa recusar aos poetas o
monopólio da inspiração, ainda os situo num grupo seleto de favoritos da
Fortuna.
Neste ponto, certas dúvidas podem surgir na
minha platéia. Toda sorte de torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos que
lutam pelo poder com um punhado de retumbantes palavras-de-ordem também gostam
de seu trabalho, e também cumprem suas obrigações com um fervor inventivo. Bem,
está certo: mas eles "sabem", e o que quer que saibam é o suficiente
para eles, de uma vez por todas. Não querem descobrir mais nada, uma vez que
isso pode reduzir a força de seus argumentos. Mas todo conhecimento que não
leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperatura
necessária para a conservação da vida. Em casos extremos, bem conhecidos desde
a antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à
sociedade.
É por isso que dou tanto valor à pequena frase
"não sei". É pequena, mas voa com asas poderosas. Expande nossa vida
para incluir espaços que estão dentro de nós, bem como as vastidões exteriores
em que a nossa minúscula Terra pende suspensa. Se Isaac Newton nunca tivesse
dito a si mesmo "não sei", as maçãs do seu pequeno pomar poderiam ter
caído no chão como uma chuva de granizo - no máximo, teria parado para pegá-las
e devorá-las com deleite. Se a minha compatriota Marie-Curie Sklodowska nunca
tivesse dito a si mesma "não sei", na certa acabaria lecionando
química em alguma faculdade particular para mocinhas de boas famílias, e terminaria
seus dias cumprindo esse trabalho, de resto perfeitamente respeitável. Mas ela
não parou de dizer "não sei", e essas palavras levaram-na, não só uma
vez, mas duas, a Estocolmo, onde espíritos inquietos, indagadores, são de
tempos em tempos contemplados com o Prêmio Nobel.
Poetas, se autênticos, também devem repetir
"não sei". Todo poema assinala um esforço para responder a essa
afirmação, mas assim que a frase final cai no papel, o poeta começa a hesitar,
a se dar conta de que essa resposta particular era puro artifício,
absolutamente inadequada. Portanto, os poetas continuam a tentar e, mais cedo
ou mais tarde, os resultados da sua insatisfação consigo mesmos são reunidos, e
presos num clipe gigante pelos historiadores da literatura, e passam a ser chamados
de suas "obras".
Às vezes, sonho com situações que não podem
virar realidade. Imagino, por exemplo, que tenho uma chance de trocar umas
palavrinhas com o autor do Eclesiastes, aquele comovente lamento sobre a
vaidade de todos os esforços humanos. Curvo-me profundamente diante dele, pois
é um dos maiores poetas, pelo menos para mim. Depois seguro a sua mão.
"Não há nada de novo sob o sol - foi o que você escreveu. Mas você mesmo
nasceu novo sob o sol. E o poema que criou é também novo sob o sol, uma vez que
ninguém o havia escrito antes de você. E todos os seus leitores são também
novos sob o sol - aqueles que viveram antes de você não puderam ler o seu
poema. E esse cipreste sob o qual está sentado não cresceu desde o início dos
tempos. Nasceu de um outro cipreste semelhante ao seu, mas não exatamente
igual.
E, Eclesiastes, eu também gostaria de lhe
perguntar que coisa nova sob o sol está agora em seus planos de trabalho. Um
suplemento adicional às idéias que já expressou? Ou talvez esteja agora tentado
a contradizer algumas delas? Em sua obra inicial, você fez menção à alegria -
de que adianta se é fugaz? Então, será que o seu poema novo sob o sol vai falar
da alegria? Já tomou notas, fez rascunhos? Duvido que você responda: 'Já
escrevi tudo, não tenho mais nada a acrescentar'. Não existe no mundo nenhum
poeta que possa dizer isso, muito menos um grande poeta como você."
O mundo - o que podemos pensar quando estamos
apavorados com a sua amplidão e com a nossa própria impotência, ou quando
estamos amargurados com a sua indiferença em relação ao sofrimento individual,
das pessoas, dos animais e talvez até das plantas (pois por que estamos tão
seguros de que as plantas não sentem dor?); o que podemos pensar sobre as suas
vastidões penetradas pelos raios de estrelas rodeadas por planetas que apenas
começamos a descobrir, planetas já mortos? Simplesmente não sabemos; o que
podemos pensar sobre este teatro imensurável para o qual temos ingressos
reservados, mas ingressos cujo prazo de validade é risivelmente curto,
delimitado como está por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos sobre
este mundo - ele é assombroso.
Mas "assombroso" é um epíteto que
oculta uma armadilha lógica. Ficamos assombrados, afinal de contas, por coisas
que divergem de alguma norma conhecida e universalmente aceita, de um truísmo
ao qual nos habituamos. Mas a questão é que não existe esse mundo óbvio. Nosso
assombro existe per se e não se baseia numa comparação com outra coisa.
Claro, na fala cotidiana, em que não paramos a todo
instante para ponderar cada palavra, todos usamos expressões como "o mundo
comum", "vida comum", "o desenrolar comum dos
acontecimentos". Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as
palavras, nada é usual ou normal. Nem uma única pedra e nem uma única nuvem
acima dela. Nem um único dia e nem uma única noite depois dele. E sobretudo nem
uma única existência, a existência de nenhuma pessoa neste mundo.
Tudo indica que os poetas terão sempre uma tarefa muito árdua à espera.
FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO
Pularam dos andares em chamas-
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles-
descrever este vôo
e não acrescentar o último verso.
POR UM ACASO
Poderia ter acontecido.
Teve que acontecer.
Aconteceu antes. Depois. Mais perto. Mais longe.
Aconteceu, mas não com você.
Você foi salvo pois foi o primeiro.
Você foi salvo pois foi o último.
Porque estava sozinho. Com outros. Na direita. Na esquerda.
Porque chovia. Por causa da sombra.
Por causa do sol.
Você teve sorte, havia uma floresta.
Você teve sorte, não havia árvores.
Você teve sorte, um trilho, um gancho, uma trave, um freio,
um batente, uma curva, um milímetro, um instante.
Você teve sorte, o camelo passou pelo olho da agulha.
Em conseqüência, porque, no entanto, porém.
O que teria acontecido se uma mão, um pé,
a um passo, por um fio
de uma coincidência.
Então você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas em curso?
Um só buraco na rede e você escapou?
Fiquei mudo de surpresa.
Escuta,
como seu coração dispara em mim.
A ALEGRIA DE ESCREVER
Para onde corre este cervo escrito na floresta que escrevi?
É para beber da água escrita,
que desenha seu focinho?
Por que ele ergue a cabeça, escutou algo?
Apoiado nas quatro patas emprestadas da verdade
ele apura as orelhas sob meus dedos.
Silêncio-essa palavra ressoa na textura do papel
e afasta os galhos
que brotam da palavra floresta.
Sobre a folha em branco há letras espreitando
que podem tomar o mau caminho
formando frases ameaçadoras
das quais nada escapa.
Em cada gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho na mira,
prontos a descer pela caneta íngreme,
cercar o cervo e apontar as armas.
Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.
No preto-e-branco vigem outras leis.
Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser
e poderá ser dividido em pequenas eternidades,
cada uma com chumbo suspenso em pleno vôo.
Aqui nada acontecerá sem meu aval.
Contra minha vontade, nem uma folha cairá
e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.
Então existe um mundo
onde eu possa impor o destino?
Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?
Uma existência que, a meu comando, não terá fim?
A alegria de escrever.
O poder de preservar.
Vingança de uma mão mortal.
A CORTESIA DOS CEGOS
O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
Ele lê-pois já não pode parar-
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
Ele gostaria de omitir-embora seja impossível-
todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.
BEM CEDO
Ainda durmo,
mas enquanto isso as coisas acontecem.
A janela embranquece,
a escuridão se acinzenta,
o quarto emerge de um espaço indefinido,
listas pálidas e instáveis buscam apoio.
Na fila, sem pressa,
pois isso é uma cerimônia,
amanhecem as superfícies do teto e das paredes,
as formas se destacam
umas das outras,
as da esquerda das da direita.
As distâncias entre os objetos vibram,
as primeiras luzes cintilam
no copo, na maçaneta.
As coisas deixam de ser impressões, já existem,
como o que ontem foi deslocado,
o que caiu no chão
e o que está contido nas molduras.
Apenas os detalhes continuam invisíveis.
Mas atenção, atenção, atenção,
tudo indica que as cores estão retornando
e mesmo a mínima coisa recebe de volta sua matiz,
acompanhada de uma ponta de sombra.
Raramente isso me surpreende, mas deveria.
Normalmente eu acordo, testemunha atrasada,
o milagre finalizado,
o dia definido
e a aurora magistralmente transformada em manhã.
AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS
Quando eu falo a palavra Futuro,
a primeira sílaba já pertence ao passado.
Quando eu falo a palavra Silêncio,
o destruo.
Quando eu falo a palavra Nada,
crio algo que nenhum não-ser comporta.
ENCONTRO INESPERADO
Nós nos tratamos com extrema cortesia,
dizemos: quanto tempo, que bom revê-lo.
Nossos tigres bebem leite.
Nossos falcões preferem o chão.
Nossos tubarões se afogam no mar.
Nossos lobos bocejam diante da jaula aberta.
Nossas cobras perderam seu lampejo,
nossos macacos, sua graça; nossos pavões, suas plumas.
Faz tempo que os morcegos deixaram nossos cabelos.
Caímos em silêncio no meio da conversa,
e não há sorriso que nos salve.
Nossos humanos
não sabem falar uns com os outros.
O FIM E O INÍCIO
Depois de toda guerra
alguém tem que fazer a faxina.
As coisas não vão
se ajeitar sozinhas.
Alguém tem que tirar
o entulho das ruas
para que as carroças possam passar
com os corpos.
Alguém tem que abrir caminho
pelo lamaçal e as cinzas,
as molas dos sofás,
os cacos de vidro,
os trapos ensangüentados.
Alguém tem que arrastar o poste
para levantar a parede,
alguém tem que envidraçar a janela,
pôr as portas no lugar.
Não é fotogênico
e leva anos.
Todas as câmeras já foram
para outra guerra.
Precisamos das pontes
e das estações de trem de volta.
Mangas de camisas ficarão gastas
de tanto serem arregaçadas.
Alguém de vassoura na mão
ainda lembra como foi.
Alguém escuta e concorda
assentindo com a cabeça ilesa.
Mas haverá outros por perto
que acharão tudo isso
um pouco chato.
De vez em quando alguém ainda
tem que desenterrar evidências enferrujadas
debaixo de um arbusto
e arrastá-las até o lixo.
Aqueles que sabiam
o que foi tudo isso,
têm que ceder lugar àqueles
que sabem pouco.
E menos que pouco.
E finalmente aos que não sabem nada.
Alguém tem que deitar ali
na grama que cobriu
as causas e conseqüências,
com um matinho entre os dentes
e o olhar perdido nas nuvens.
PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA
Nós o chamamos de grão de areia,
mas ele não se considera nem grão nem areia.
Vive perfeitamente bem sem um nome,
seja genérico, particular,
provisório, permanente,
incorreto ou preciso.
Nosso olhar, nosso toque nada significam para ele.
Ele não se sente observado e tocado.
E o fato de que caiu no parapeito
é uma experiência nossa, não dele.
Poderia cair em qualquer outro lugar,
sem saber se parou de cair
ou se continua caindo.
A janela tem uma bela vista do lago,
mas a vista não se vê a si mesma.
Ela existe nesse mundo
sem cor, sem formato,
sem som, sem cheiro e sem dor.
O fundo do lago existe sem chão
e sua margem, sem beira.
Sua água não se sente nem seca nem molhada
e suas ondas nem uma nem muitas.
Elas quebram surdas a seu próprio barulho
em pedras nem grandes nem pequenas.
E tudo isso sob um céu que por natureza não é céu,
onde o sol se põe sem se pôr
e se esconde sem se esconder por trás de uma nuvem indiferente,
agitada por um vento
que sopra apenas por soprar.
Um segundo passa.
Outro.
Um terceiro.
Mas esses três segundos são apenas nossos.
O tempo passou feito um mensageiro com notícias urgentes.
Mas isso é apenas nossa símile.
O personagem é inventado, sua pressa imaginária,
sua notícia desumana.
REVISTA PIAUÍ, Ed.
08, Maio 2007
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