Os anjos por dentro
Nunca percebi
como a nossa mãe escolhia de entre todas as galinhas a que seria sacrificada.
Também nunca lhe perguntei. Logo que a escolhida era agarrada, fazia-se um
silêncio esquisito. A escolhida raramente gritava ou se debatia. Ficávamos a
odiar a nossa mãe durante um tempo
por DULCE
MARIA CARDOSO
Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Era pouco
mais do que um carreiro. Muito íngreme. A terra dura e desbotada. Quase ninguém
escolhia ir por ali, mas aquele era o caminho preferido da nossa mãe.
Voltávamos do rio. O meu irmão do lado direito e eu do esquerdo, a nossa mãe no
meio. A nossa mãe orgulhava-se de nós como não se orgulhava de mais nada na
vida.
A água do rio estava fria apesar de o verão ir avançado. Nas
partes mais acidentadas do leito a água ficava branca e borbulhava ruidosamente
por causa da força da corrente. As bolhas de ar eram tão grandes que parecia
possível atravessar o rio de bolha em bolha. Se o fizéssemos, chegaríamos em
pouco tempo à aldeia que avistávamos na outra margem. De carro levávamos horas.
O nosso carro era velho e as estradas ruins. Era raro sairmos. Tudo se tornava
demasiado longe.
A nossa mãe estendia a minha toalha e a do meu irmão em cima da
laje e punha a cesta do lanche à sombra do pinheiro-manso. As nossas toalhas
eram iguais exceto nas cores. A minha era laranja e a do meu irmão azul. Tinham
ambas riscas brancas. A nossa mãe comprava-nos roupas e brinquedos iguais ou
semelhantes. Eu era um bocadinho mais alto do que o meu irmão e os pelos começavam
a crescer-me nos sítios mais escondidos do corpo. Tirando isso, parecia não
haver grande diferença entre nós.
A laje pouco maior era do que os nossos corpos franzinos
deitados ao sol, lado a lado. Trazíamos sempre um banco de madeira para a nossa
mãe se sentar à sombra do pinheiro. Nunca fazia nada. Olhava para o rio e para
as árvores, para o céu e para a aldeia na outra margem, como se visse tudo pela
primeira vez. A nossa mãe não gostava de conversar. Às vezes cantava.
Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. O canto da
nossa mãe abafava o barulho da terra dura a ser esmagada pelas solas de cabedal
das nossas sandálias. Na berma cresciam rosinhas selvagens. Outras vezes
margaridas. Mas havia sempre muitas pedras e giestas.
Assim que nos abeirávamos do rio, eu e o meu irmão
desembaraçávamo-nos das sandálias, das camisetas e dos calções e corríamos para
a água. Os nossos pés pequenos pisavam o caminho cheio de calhaus e cardos
secos como se fosse um caminho muito liso. Éramos leves demais para que os
calhaus e cardos secos nos magoassem.
Podíamos experimentar a água se nos molhássemos só até os
joelhos. Para irmos ao banho tínhamos de esperar que a digestão se fizesse.
Nunca desobedecíamos. Como almoçávamos ao meio-dia tínhamos de esperar até as
três horas. Com os pés enfiados no fundo lodoso, as pernas uns espetos,
experimentávamos a água e gritávamos o mais alto que podíamos, hoje a água está
gelada, está mesmo gelada, oh, hoje é o dia em que a água está mais gelada.
Dizíamos isso todos os dias.
Os nossos gritos furavam as copas das árvores e subiam até as
nuvens onde ficavam pendurados a gritar-nos de volta. A nossa mãe dizia-nos que
era o eco. Nós imaginávamos que o eco era mais um dos bichos que nunca víramos,
mas que vivia no meio dos montes que sitiavam o rio. Tal como os lobos ou as
serpentes, o eco também não se deixava ver. Mas fazia-se ouvir. Chegava mesmo a
rir-se conosco. Só que de forma mais desmanchada.
Também costumávamos gritar, pai, já chegamos ao rio, ou então,
vamos lançar um barco, pai. Acreditávamos que o eco podia fazer com que estes
recados chegassem ao nosso pai.
O nosso pai era técnico na barragem e saía todos os dias de
manhã cedo com uma marmita. Voltava ao fim do dia com a testa muito enrugada
como se tivesse passado o dia a ver coisas incompreensíveis. Sentava-se na
melhor cadeira que havia em nossa casa e a nossa mãe descalçava-o e servia-lhe
um copo de vinho.
Eu e o meu irmão gostávamos de inventar histórias sobre a
barragem. O nosso pai era sempre o herói e os bandidos terríficos que atacavam
a barragem eram sempre vencidos por ele. Tínhamos a certeza de que o nosso pai
escondia uma arma na marmita. Inventamos várias maneiras de chegar a essa arma,
mas nunca nos atrevemos a executar nenhum dos planos. Não sabíamos se o que nos
assustava mais era o manuseio da arma ou a possibilidade de ela não existir.
O rio ia dar à barragem e não havia trajeto mais rápido até lá.
No entanto, não era um caminho que alguém pudesse utilizar. O nosso pai tinha
de dar muitas voltas de carro pela estrada da serra para ir e vir todos os
dias. Mas o rio ia ter diretamente com ele e nós ficávamos maravilhados a olhar
na direção em que a água corria. Mesmo depois de se esconder de nós, no sítio
onde o rio fazia uma curva, sabíamos que a água não parava até chegar à
barragem. Eu e o meu irmão queríamos ir até aquela curva e depois até a outra e
a outra, queríamos ir além de todas as curvas para ver para onde ia aquela água
toda, para ver a barragem e a água presa. Mas a nossamãe nunca saía dali.
Passava a tarde sentada no banco de madeira e nós tínhamos de ficar por perto.
Não estávamos autorizados a escapar-lhe do alcance dos olhos.
Enquanto esperávamos pelo final da digestão, entretínhamo-nos a
construir barcos que lançávamos à água para que o rio os levasse até o nosso
pai. Fazíamos desenhos ou escrevíamos algumas frases que escondíamos dentro
deles. Lançamos um barco, pai, gritávamos, lançamos mais um barco. Mas o nosso
pai nunca recebeu nenhum dos barcos nem nunca sequer ouviu o eco repetir os
nossos gritos. O eco e os barcos desfazem-se ou encalham antes de chegarem
ao destino, dizia-nos o nosso pai quando chegava à casa. Parecia-nos impossível
que fosse sempre assim. Deitados na cama, antes de adormecer, culpávamos os
bandidos terríficos que atacavam a barragem pelo desaparecimento dos nossos
barcos. E no dia seguinte tornávamos a fazer barcos e a gritar, lançamos mais
um barco, pai.
Os nossos peitos enchiam-se e esvaziavam-se quando gritávamos
mas, com ar ou sem ar, as costelas eram sempre visíveis. Os nossos corpos ainda
não se tinham abalançado a crescer. Não havia maneira de acontecer o pulo de
que a nossa mãe falava. Não tarda nada e dão um pulo, dizia, não tarda nada e
tenho aqui dois homens. Mas os nossos corpos pareciam surdos e continuavam
pequenos.
Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Em certas
partes, o carreiro estreitava tanto ou as curvas eram tão apertadas que
deixávamos de ver o caminho. Como já o sabíamos decor nada nos impedia de
continuar. Eu do lado esquerdo, a nossa mãe ao meio e o meu irmão do lado
direito. Suficientemente afastados para não nos tocarmos. Era mais fácil
caminhar assim, com espaço entre nós.
Dispensaríamos o almoço de boa vontade, mas se não comêssemos
não íamos ao rio. A nossa mãe usava o louro na comida como as outras mulheres
usam o sal. O nosso pai dizia, desanimado, até nos ovos, mulher, até nos ovos
pões louro. Mas a nossa mãe continuava a fritar a folha de louro no azeite
antes de abrir os ovos na borda do fogão de ferro preto. Os ovos, mais do que o
uso excessivo do louro, intrigavam-me muito. A rodela amarela sempre centrada,
a casca frágil que lhes servia de embrulho, a clara transparente que ficava
branca ao lume. Era tudo inexplicável. Como um verdadeiro mistério. Daqueles
que ninguém tem interesse em desvendar.
Passava muito tempo a observar as
galinhas. Tentava descobrir-lhes nas cabeças, especialmente nos olhos, o
conhecimento da geometria, ainda que na altura não conhecesse a palavra.
Indiferentes, as galinhas continuavam a bicar o que havia para bicar no
quinteiro, fazendo gestos empertigados com os pescoços. Não lhes levava a mal a
indiferença por as considerar infinitamente mais sábias do que eu. Além de lhes
admirar os conhecimentos de geometria evidenciados na feitura dos ovos,
admirava-lhes a dignidade com que se deixavam apanhar para a matança dos
domingos. As galinhas agitavam-se no quinteiro enquanto as mãos da nossa mãe
perseguiam a escolhida. Nunca percebi como a nossa mãe escolhia de entre todas
as galinhas a que seria sacrificada. Também nunca lhe perguntei. Logo que a
escolhida era agarrada, fazia-se um silêncio esquisito. A nossa mãe levava a
escolhida presa pelas asas, ao pendurol. A escolhida raramente gritava ou se
debatia.
Ficávamos a odiar a nossa mãe durante um tempo. Ainda não
sabíamos que a violência maior não é a que acontece depois da escolha. Nem é
sequer a própria escolha. A violência maior acontece antes, muito antes, e é
essa que torna a escolha possível ou necessária. Ficávamos a odiar a nossa mãe por
uns instantes. Não mais do que uns instantes. Ainda sentíamos tudo de forma
provisória.
Mais tarde, quando aprendi geometria na escola, não gostei
porque era tudo muito abstrato. A física era mais aplicada, mas também não me
interessou. Desagradava-me especialmente o problema do plano inclinado.
Desagradava-me a garantia de que um corpo pesado colocado numa superfície
inclinada move-se indefinidamente com movimento continua-mente acelerado.
Desagradava-me mais ainda a explicação de que os corpos pesados têm tendência
para mover-se para o centro da Terra e só esforçadamente se movem para cima. A
verdade é que nunca gostei da escola. Nunca aceitei que tudo possa, deva ou
tenha de ser explicado. Explicado e transmitido.
Às três horas corríamos para a água. O corpo do meu irmão
tornava-se indispensável para as minhas brincadeiras. Assim como o meu para as
dele. Gostávamos muito de pregar rasteiras um ao outro. Quanto mais tortos
caíssemos, melhor. Às vezes batíamos nas pedras do fundo do rio e
aleijávamo-nos. Também gostávamos de fazer corridas. Nenhum de nós era bom
nadador, mas queríamos acreditar que sim. Perguntávamos à nossa mãe qual dos
dois nadava melhor. Nadam os dois bem, era a resposta que tínhamos sempre.
Acontecia o mesmo quando fazíamos desenhos e queríamos saber qual era o mais
bonito. Gosto tanto de um quanto do outro, são ambos muito bonitos. Por mais
que insistíssemos, não recebíamos uma resposta diferente.
A meio do rio, onde já não tínhamos pé, havia um tronco de
árvore que ficara preso entre as pedras. Era uma espécie de meta inatingível,
ali tão perto. Estávamos proibidos de nos aventurarmos até lá. Por causa das
correntes, dissera-nos o nosso pai. Só quando ficávamos com a pele dos dedos
engelhada, os lábios roxos de frio e sem conseguirmos parar de tremer é que
regressávamos às toalhas estendidas sobre a laje. Ficávamos quietos a sentir o
oco pulsante do peito a aquecer entre o quente do ar e o quente da pedra. Logo
que nos secávamos íamos de novo para a água. Naquelas tardes de verão o tempo
demorava mais a acabar. E isso sabia bem.
Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Eu levava a
cesta do lanche, que era mais pesada, e o meu irmão levava o pequeno banco de
madeira. Às vezes o meu irmão atrasava o passo, sem dar conta. A nossa mãe
chamava-o à atenção e ficávamos de novo os três lado a lado.
Um carro é um corpo pesado.
O Opel Kapitän do doutor era indubitavelmente um corpo pesado. Eu e o meu
irmão gostávamos mais daquele Opel Kapitän branco do que de todos os carros que
já tínhamos visto. Mesmo contando com os dos jornais e revistas. Não havia
miúdo que não se abeirasse do Opel Kapitän quando o doutor o deixava na rua.
Admirávamos-lhe os cromados resplandecentes e sustínhamos a respiração para não
os embaciar. Passávamos os dedos pela carroçaria. Ao de leve, com medo de a
riscar. Espreitávamos para o interior, apreciávamos o volante grande e fino e o tablier que tinha três rodelas cromadas com
números e sinais com aspecto de gerirem matérias complexas. Os bancos eram
corridos e as costuras na napa faziam riscas muito certinhas. Os faróis eram
redondos e hipnotizantes. Era um modelo de 1959, mas estava tão estimado que
parecia acabado de comprar.
O motor do Opel Kapitän fazia um rugido que todos reconhecíamos.
Logo que o doutor dava à chave, o característico rugir do Opel Kapitän fazia
ouvir-se a léguas de distância. Mas naquele dia, quando, ao dobrarmos uma das
curvas apertadas do atalho, avistamos o Opel Kapitän ocupando toda a largura do
caminho, não havia ninguém ao volante nem dentro do carro. Nem ninguém por
perto. O Opel Kapitän estava imponentemente sozinho. E, no entanto, moveu-se.
Sem rugido. Nem um clique sequer. O Opel Kapitän moveu-se e o corpo pesado que
era avançou sobre nós.
Naquele dia o doutor tinha sido
chamado para acudir ao nosso vizinho que tinha acordado sem se lembrar de onde
estava nem quem era. Enquanto o doutor procurava a origem do mal do nosso
vizinho, o Opel Kapitän avançava inexplicavelmente sobre nós. Voltávamos do rio
e subíamos pelo atalho de sempre. Em certas partes, o carreiro estreitava tanto
ou as curvas eram tão apertadas que deixávamos de ver o caminho. Como já o
sabíamos de cor nada nos impedia de continuar. Eu do lado esquerdo, a nossa mãe
ao meio e o meu irmão do lado direito. Suficientemente afastados para não nos
tocarmos. Era mais fácil caminhar assim, com espaço entre nós.
A nossa mãe também era um corpo pesado. Mesmo eu e o meu irmão,
apesar de muito leves, éramos corpos pesados. Só esforçadamente conseguíamos
afastar-nos do centro da Terra e caminhar para cima. Tanto mais esforçadamente
quanto mais cansados estivéssemos. Quando o Opel Kapitän começou
inexplicavelmente a deslizar pelo atalho, eu e o meu irmão estávamos muito
cansados por causa da subida e das brincadeiras no rio. Para além disso,
ficamos paralisados por vermos que o nosso adorado Opel Kapitän tinha
livremente escolhido vir ter conosco. Movendo-se indefinidamente, em movimento
continuamente acelerado. Seria preciso um esforço inumano para que eu e o meu
irmão nos desviássemos do Opel Kapitän. Mas nem eu nem o meu irmão estávamos
preparados para esforços inumanos.
A nossa mãe estava. A nossa mãe ao centro, o meu irmão do lado
direito e eu do esquerdo, ocupando todo o caminho. E o Opel Kapitän, o belo
Opel Kapitän, animado por uma vontade própria, ocupando também todo o caminho,
à nossa frente em sentido contrário. Perto. Cada vez mais perto. Veloz. Cada
vez mais veloz.
Quando a nossa mãe me empurrou para a berma, não sei se me
desequilibrei ou se foi o corpo dela sobre o meu que me fez cair. A nossa mãe
só teve tempo de me atirar para a berma e de proteger o meu corpo com o seu.
Mesmo assim, não fiquei suficientemente protegido. Conseguia ver o meu irmão de
pé, no meio da estrada, o banco de madeira na mão, de camiseta azul e sandálias
castanhas, com os calções tufados que ambos detestávamos, o meu irmão, pouco
mais alto do que os cromados luzidios do Opel Kapi-tän. O meu irmão a
olhar o Opel Ka-pitän de frente.
Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. O canto da
nossa mãe abafava o barulho da terra dura a ser esmagada pelas solas de cabedal
das nossas sandálias. Na berma cresciam rosinhas selvagens. Outras vezes
margaridas. Mas havia sempre muitas pedras e giestas.
O Opel Kapitän parou de repente sem ter tocado no meu irmão.
Parou simplesmente. Sem barulho de travões nem nada. Como se se tivesse
esquecido de como as coisas são. Ou como se o meu irmão o tivesse feito parar
com uma espécie de hipnotismo dirigido a máquinas. O belo Opel Kapitän parado
pelos olhos do meu irmão que continuou de pé, no meio da estrada, com o banco
de madeira na mão, de camiseta azul e sandálias castanhas, com os calções
tufados que ambos detestávamos. O corpo da nossa mãe, na berma, sobre o meu.
Levantamo-nos e a nossa mãe aproximou-se do meu irmão,
pegou no banco de madeira, estendeu-lhe a mão. Quase reverentemente. O meu
irmão deixou-se retirar da frente do carro. Eu esperava na berma. Contornamos o
carro e continuamos a subir. Faltava pouco para chegarmos à casa.
Nunca falamos sobre o que aconteceu naquele dia ao voltarmos do
rio, subindo o atalho de sempre. Continuamos a comportar-nos como se nada
tivesse acontecido. Mas já era tudo diferente.
Voltávamos do rio e subíamos pelo
atalho de sempre. Era pouco mais do que um carreiro. Muito íngreme. A terra
dura e desbotada. Quase ninguém escolhia ir por ali, mas aquele era o caminho
preferido da nossa mãe. Voltávamos do rio. O meu irmão do lado direito e eu do
esquerdo, a nossa mãe no meio. A nossa mãe orgulhava-se de nós como não se
orgulhava de mais nada na vida.
Passaram-se muitos anos. Talvez não tenha acontecido tudo
exatamente como contei. Mas tenho a certeza de que o dia estava a chegar ao
fim. E que a água do rio era doce.
Nenhum comentário:
Postar um comentário