sexta-feira, 30 de maio de 2008

Walt Whitman, textos traduzidos ao português

WALT WHITMAN

Poeta e humanista americano (Long Island, 31 de maio de 1819 - Nova Iorque, EUA, 26 de março de 1892)

  • Vejo os navios (eles durarão alguns anos), / As grandes fábricas com seus capatazes e empregados, / E ouço a aprovação a tudo isso, e a isso não me oponho".

- Fonte: "Folhas de Relva"

  • "Lágrimas! Lágrimas! Lágrimas! / À noite, na solidão, lágrimas".

- Fonte: "Folhas de Relva"

  • "Ó com o que devo decorar as paredes da câmara mortuária? / E quais serão os quadros que pendurarei nas paredes, / Para adornar a casa funérea daquele que amo?"

- Fonte: "Folhas de Relva"

  • "Para que haja grandes poetas é preciso que haja também um grande público".

- Fonte: "Folhas de Relva"

  • "Uma mulher espera-me, tem tudo, não falta nada. Mas faltaria tudo se faltasse o sexo".

- Fonte: "Folhas de Relva"

  • "Se há alguma coisa sagrada é o corpo humano".

- Fonte: "Folhas de Relva"

  • "Celebro a mim mesmo / e canto a mim mesmo".

-Fonte: "Canto a mim mesmo"

  • "Estes são realmente pensamentos / de todo homem em qualquer tempo e lugar, / não são originais meus; / e se não são de vocês tanto quanto meus / não querem dizer nada / ou quase nada;"[...]

-Fonte: "Canto a mim mesmo"

  • "Vivas àqueles que levaram a pior!".

-Fonte: "Canto a mim mesmo"

  • "Existo como sou, / isso é o que basta".

-Fonte: "Canto a mim mesmo"

  • "Está na hora de eu falar de mim, / vamos ficar de pé!".

-Fonte: "Canto a mim mesmo"

  • "Meu espírito é amplo; eu contenho multidões."

- Fonte: livro Psicologia, E/Imigração e Cultura, org. de A. DeBiaggi e G. de Paiva (Casa do Psicólogo).

"Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor, / Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!" Fernando Pessoa

Walt Whitman foi um poeta norte-americano, descendente de ingleses e neerlandeses,[1] nascido em West Hills, Long Island.

Contudo, quando tinha apenas quatro anos de idade, a sua família mudou-se para Brooklyn, onde este frequentou até aos onze anos uma escola oficial, trabalhando depois como aprendiz numa tipografia.

Em 1835 trabalhou como impressor em Nova Iorque e no Verão do ano seguinte começou a ensinar em East Norwich, Long Island. Entre 1836-1838 deu aulas e de 1838 a 1839 editou o semanário Long Islander, em Huntington. Voltou ao ensino depois de participar como jornalista na campanha presidencial de Van Buren (1840-41).

Em Maio de 1841 regressou a Nova Iorque, onde trabalhou novamente como impressor.

Entre 1842-1844 editou um jornal diário, Aurora, e o Evening Tatler. Regressou a Brooklyn em 1845, e durante um ano escreveu para o Long Island Star, tornando-se de seguida editor do Daily Eagle de Brooklyn, lugar que ocupou de 1846 a 1848.

Em Fevereiro desse ano partiu com o irmão Jeff para Nova Orleans, onde trabalhou no Crescent. Deixou Nova Orleans em Maio do mesmo ano, regressando a Brooklyn através do Mississippi e dos Grandes Lagos.

Editou o Freeman de Brooklyn entre 1848-1849 e no ano seguinte montou uma tipografia e uma papelaria.

No início de Julho de 1855 publicou a primeira edição de "Leaves of Grass", impressa na Rome Brothers de Brooklyn e cujos custos Whitman suportou. A primeira edição da obra mais importante da sua carreira, não mencionava o nome do autor, e continha apenas 12 poemas e um prefácio.

A obra poética de Whitman centra-se na colectânea "Leaves of Grass", dado que ao longo da sua vida o escritor se dedicou a rever e completar aquele livro, que teve oito edições durante a vida do poeta.

No Verão seguinte foi publicada a segunda edição de "Leaves of Grass" (1856), ostentando na capa o nome do seu autor. O livro foi recebido com entusiasmo por alguns críticos, mas mal recebido pela maioria, o que, contudo, não impediu Whitman de continuar a trabalhar em novos poemas para aquela colectânea.

A segunda edição de "Leaves of Grass" era composta por 32 poemas, intitulados e numerados. Entre eles encontrava-se Poem of Walt Whitman, an American, o poema que haveria de se chamar "Song of Myself" (Canto de Mim Mesmo).

Entre a Primavera de 1857 e o Verão de 1859 Whitman editou o Times de Brooklyn, sendo publicada a 1860, em Boston, a terceira edição da sua obra. Contudo, a editora foi à falência em 1861 e a edição, que continha 154 poemas, foi pirateada.

Entre 1863-1864 trabalhou para o Exército em Washington, DC, servindo entretanto como voluntário em hospitais militares. Regressou a Brooklyn doente e com marcas de envelhecimento prematuro causadas pela experiência da guerra civil.

Trabalhou posteriomente como funcionário do Departamento do Interior (1865) e publicou em Maio desse ano o livro "Drum-Taps", que continha 53 poemas acerca da guerra civil e da experiência do autor nos hospitais militares. No mesmo ano foi despedido pelo Secretário James Harlan, por este ter considerado "Leaves of Grass" indecente.

Em 1867 foi publicada a quarta edição de "Leaves of Grass", com 8 novos poemas. No ano seguinte saiu em Londres uma seleção de poemas de Michael Rossetti, intitulada "Poems by Walt Whitman".

A quinta edição de "Leaves of Grass" (1870-1871) teve uma segunda tiragem que incluía "Passage to India" e mais 71 poemas, alguns dos quais inéditos.

Depois de publicar "Democratic Vistas", Whitman viajou para Hannover, New Hampshire. Corria o ano de (1872). Na Faculdade de Dartmouth leu "As a Song Bird on Pinions Free", posteriormente publicado com um prefácio. Em Janeiro de 1873, Whitman sofreu uma paralisia parcial. Pouco depois morreu a mãe e o escritor deixou Washington para se fixar em Camden, New Jersey, com o irmão George.

Em 1876 surgiu a sexta edição de "Leaves of Grass", publicada em dois volumes. Em Agosto de 1880, Whitman reviu as provas da sétima edição de "Leaves of Grass", que sob ameaças do Promotor Público teve de suspender a distribuição do livro.

A edição só foi retomada dois anos mais tarde por Rees Welsh e depois por David McKay. Incluía 20 poemas inéditos e os títulos definitivos e uma ordem dos poemas revista. Em 1882 foi ainda publicado o livro "Specimen Days and Collect".

Os últimos anos de vida de Whitman foram marcados pela pobreza, atenuada apenas pela ajuda de amigos e admiradores americanos e europeus.

Em 1884, Whitman adquiriu uma casa em Camden, New Jersey. Quatro anos depois, sofreu um novo ataque de paralisia e viu publicados 62 novos poemas sob o título "November Boughs" (1888). Ainda nesse ano foi publicado "Complete Poems and Prose of Walt Whitman".

A oitava edição de "Leaves of Grass" apareceu em 1889, e no ano seguinte o escritor começou a preparar a sua nona edição, publicada em 1892.

Whitman morreu no dia 26 de Março de 1892 e foi sepultado em Camden, New Jersey.

Cinco anos depois foi publicada em Boston a décima edição de Leaves of Grass (1897), a que se juntaram os poemas póstumos "Old Age Echoes".

Nos seus poemas, Walt Whitman elevou a condição do homem moderno, celebrando a natureza humana e a vida em geral em termos pouco convencionais. Na sua obra "Leaves of Grass", Whitman exprime em poemas visionários um certo panteísmo e um ideal de unidade cósmica que o Eu representa. Profundamente identificado com os ideais democráticos da nação americana, Whitman não deixou de celebrar o futuro da América.

Ficou ainda mais conhecido mundialmente a partir das citações inseridas no enredo do filme Sociedade dos Poetas Mortos.


"Introduziu uma nova subjetividade na concepção poética e fez da sua poesia um hino à vida. A técnica inovadora dos seus poemas, nos quais a idéia de totalidade se traduziu no verso livre, influenciou não apenas a literatura americana posterior, mas todo o lirismo moderno, incluindo o poeta e ensaísta português Fernando Pessoa."


Walt Whitman, Marx e a revolução de 1848




Há mais que um paralelismo histórico entre o poema “Resurgemus”, o primeiro publicado por Walt Whitman, que publicamos a seguir na tradução de Rodrigo Garcia Lopes e o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels. Marx tinha, então, 30 anos e aquele que, segundo Ezra Pound, “é para a América o que Dante é para a Itália”, 29 anos. Ambas as peças, o poema e o manifesto, têm inspiração direta nas revoluções européias de 1848, que têm como epicentro a França.

Walt Whitman está, então, em New Orleans, cidade sulista povoada de refugiados europeus e que pulsa forte com as notícias do além-mar. “Todo o mundo está em comoção”, escreve Whitman: “em toda parte o povo se levantou contra as tiranias que o oprimem.” O poeta americano, sintonizado com o crescente movimento abolicionista, chega a editar um jornal (“Freeman”, do Brooklin em New York) e chega a participar como delegado na histórica convenção nacional do “Solo Livre”, quando 30 mil delegados de todo o país celebram o movimento que lutava pela aprovação de uma lei de abolição da escravidão em todo o território novo anexado.

Marx, em 1848, exilado na Bélgica, tem a sua entrada agora permitida na França revolucionária e, em abril, desloca-se para Colônia, na Alemanha, onde em junho, com Engels, prepara a criação de um jornal diário, a “Nova Gazeta Renana”, “órgão da democracia”.

Paul Zweig, autor do belíssimo “Walt Whitman. A formação do poeta” (Jorge Zahar Editor, 1988), mostra como “o estilhaçamento do sonho democrático trouxe mudanças ao pensamento de Whitman, que foram definitivas e que, em última instância, fizeram dele um poeta.” Marx termina o ano de 1848, com o luto das revoluções frustradas, afirmando que “na Alemanha uma revolução puramente burguesa (...) é impossível” e que “só é possível a contra-revolução absolutista feudal ou a revolução social-republicana”.

Para Marx, os anos 50 seriam anos penosos de construção da sua obra magna “O Capital”. Para Whitman, seriam os anos mais fecundos da sua vida, resultando na criação de “Folhas da relva”, a mais alta utopia cósmica e erótica democrática da poesia moderna.


Resurgemus


De repente de seu covil urinado e sonolento, covil de escravos
A Europa desperta feito um relâmpago... meio surpresa consigo,
Pés sobre cinzas e farrapos... Suas mãos esganando a garganta dos reis.

Ah, fé e esperança! Ah, doloridos fechos de vidas!” Tantos doentes de coração!
Concentrem-se neste hoje, e se refaçam.

E vocês, pagos para corromper o Povo... prestem atenção, mentirosos:
Não foi por agonias infinitas, assassinatos, luxúrias,
Para a corte roubar em suas miríades de formas mesquinhas,
Parasitando os salários de fome dos pobres;
Promessas demais foram juradas pelos lábios dos reis, E quebradas, por isso motivo de riso

E que estando no poder, não foi por isso que ressoamos golpes de vingança pessoal
...ou rolam as cabeças dos nobres;
O Povo tinha nojo da ferocidade dos reis.

Mas a doçura do perdão destilou uma destruição amarga, e os regentes assustados retornaram:
Cada um paramentado com seu séqüito... carrasco, padre e coletor de impostos... soldado, advogado, carcereiro e delator.

Por trás de tudo, repare, tem uma Forma,
Vaga como a noite, interminavelmente drapejada, testa e forma em dobras Escarlates,
Com face e olhos que ninguém pode ver,
Fora de seu manto apenas isso... os mantos mesmos, vermelhos, erguidos
pelo braço,
Um dedo aponta longe para cima, como cabeça de serpente aparecendo.

Enquanto isso cadáveres jazem em túmulos recentes... cadáveres
ensaguentados de jovens;
A corda da forca baqueia com força... as balas dos príncipes voam... os
Poderosos gargalham,
E todas essas coisas geram frutos... e eles são bons.

Cadáveres de jovens,
Esses mártires pendurados nas forcas... com os corações varados de Chumbo,
Frios e imóveis parecem... viver em algum lugar com um vitalidade
imassacrável.

Eles vivem em outros jovens, oh, reis,
Vivem em seus irmãos, de novo prontos pra desafiar vocês:
Foram purificados pela morte... Foram ensinados e exaltados.

Não há túmulo de alguém assassinado pela liberdade onde não
cresça a semente
da liberdade... que por sua vez gera sementes,
que o vento leva pra longe e re-semeia, sendo nutridas por chuvas
e neves.

Não há espírito capaz de deixar livres as armas dos tiranos,
Mas se impõe invisivelmente sobre a terra... sussurando e aconselhando e
Prevenindo.

Que outros se desesperem com você, liberdade... eu nunca me desespero.

A casa está fechada? O professor saiu?
No entanto fique esperto... e não se canse de esperar,
Ele logo vai voltar...seus mensageiros estão chegando.


Nascido em West Hills, Nova York, publicou seus poemas nas sucessivas edições do livro Folhas da Relva, sempre com o acréscimo de novos poemas, entre 1855 e 1889. Dedicou-se a cantar o povo norte-americano: acreditava na democracia, na iniciativa individual e na liberdade pessoal. Defendeu abertamente o homossexualismo. Também buscou a liberdade na forma: usou o verso livre, sem métrica regular, e o branco, sem rimas. Sua obra influenciou muito os autores do final do século XIX e início do XX, como Oscar Wilde, Fernando Pessoa e Federico García Lorca. Foi uma das forças propulsoras da Arte Moderna.


Walt Whitman e as Folhas de Relva


Eduardo Pitta


Walt Whitman é um dos símbolos da América — libertário, aventureiro, entusiasta. Eduardo Pitta acompanha a par e passo o caminho da vida e obra de um dos mais polémicos poetas do seu e nosso tempo. No fundo, «as doutrinas libertárias dos sixties, o folclore hippy, o pacifismo, a ressaca dos «guerreiros» do Vietnam (que seria uma espécie de ressaca «sulista» actualizada, como num processo de transfert), as conquistas da ecologia, as exigências do black power e a afirmação planetária do movimento gay, pese sempre o americaníssimo tiro de partida, tudo situações que a obra de Whitman prenunciou». Um pretexto para, como leitores, revisitarmos Leaves of Grass.

Walt Whitman nasceu em West Hills, Huntington (Long Island), a 31 de Maio de 1819, e foi educado com a rigidez característica dos quakers, comunidade de que sua mãe, Louisa Van Velsor, de origem holandesa, fazia parte. É do domínio das enciclopédias. Mas há um ponto obscuro em que os biógrafos de Walt Whitman divergem: é na abordagem que fazem do caso de Southold. Aconteceu mesmo ou tudo não passou de um boato sórdido? O futuro autor de Leaves of Grass terá sido apontado publicamente como violador de um rapaz. A acusação (1841) encontrou eco no púlpito da igreja local, e o mestre-escola não teve alternativa. Abandonou as funções e a terreola. O incidente parece não ter tido outras consequências. Justin Kaplan considera a história apócrifa, uma «lenda», a juntar a outras. David S. Reynolds, autor de Walt Whitman's America: a Cultural Biography (1995), sustenta que tudo não passou de um golpe sujo, de origem corporativa. O perfil de Whitman, que começara como paquete no escritório de um advogado e fora aprendiz de tipógrafo, era considerado pouco ortodoxo para um mestre-escola. Havia sido (1838-39) o editor-fundador do Long-Islander, um semanário de Huntington onde publicou poesia e prosa e, durante a campanha eleitoral de 1840, participou da fracassada tentativa de reeleger como presidente o democrata Martin Van Buren, que era contra a anexação do Texas (perdeu para o conservador W. H. Harrison — e o Texas foi anexado em 1845). Também se preocupava excessivamente em estimular o gosto pela vida ao ar livre e pelos valores da natureza. Não espanta que a tradição oral do pequeno burgo fosse malévola. Mas, sobre Southold, parece haver esqueletos no armário. Porém, activistas e historiadores da condição homossexual (ou como tal «apropriados» pelos sectores militantes da crítica gay), coevos de Whitman, casos de, entre outros, os escritores ingleses John Addington Symonds [1840--1893], Edward Carpenter [1844-1929] e Henry Havelock Ellis [1859-1939], omitem o facto. Do outro lado, há quem argumente com o imaginário sadista das prosas da juvenília. Seja como for, a legenda do propagador da adhesiveness parece ter começado aí. Adhesiveness era como no século XIX chamavam à sodomia, um eufemismo pateta equivalente ao gay love contemporâneo: «Por caminhos não percorridos,/ Pela vegetação das margens das lagunas,/ Fugindo da ostensiva vida,/ De todas as normas já promulgadas, dos prazeres, benefícios, convenções,/ Tudo isso com que, demasiado tempo, alimentei a minha alma [...] Sem envergonhar-me mais (pois neste lugar distante como em nenhum outro posso abandonar-me)/ Entregue à vida que não se revela ainda que tudo contenha,/ Decido-me hoje a cantar apenas os cantos de viril afecto/ Projectando--os ao longo da plena vida,/ Legando, desde já, as formas de másculo amor,/ Pela tarde deste delicioso Setembro dos meus quarenta e um anos,/ Dirijo--me a todos os homens que são ou foram jovens,/ Conto-lhes o segredo das minhas noites e dos meus dias,/ Celebro a necessidade de companheiros.» Este poema, escrito em 1860, abre o Calamus, terceira sequência de Leaves of Grass. Na versão portuguesa (muito concisa mas de assinalável qualidade), da autoria de José Agostinho Baptista, a ordem dos poemas não segue o original. É pena, porque «In Paths Untrodden» tem a ressonância de um manifesto. Ele aí está, a abrir Whitman's Men (1996), homenagem recente de sete fotógrafos (Mark Beard, John Dugdale, Robert Flynt, Bill Jacobson, Russell Maynor, Steve Morrison e Frank Yamrus), feita a partir da «encenação» fotográfica de poemas de Calamus. O cálamo é apenas uma erva, mas, de entre todas, é aquela que tem «o caule maior e mais duro, assim como um fresco, aquático e penetrante aroma», disse o bardo.

Os anos do jornalismo Em todo o caso, foi em 1841 que se mudou para Manhattan (na infância e adolescência tinha vivido largas temporadas em Brooklyn). Na grande metrópole, ele foi engrossar o «batalhão ligeiro dos publicistas». A expressão é de John Burroughs [1837-1921], que se tornou seu amigo (conheceram-se em Washington durante a guerra civil) e foi o primeiro dos seus biógrafos. Trabalha como jornalista no Broadway Journal, dirigido então por Edgar Allan Poe, no Columbia Magazine, em New World e no Brooklyn Eagle (1846-48), de que foi despedido pelas suas posições anti-esclavagistas. Ecléctico, assina crítica de ópera e teatro, relatos de jogos de baseball, crónicas do quotidiano, artigos sobre a questão esclavagista, pequenos contos, ficção «gótica», guias de viagem, etc. É também dessa época a publicação de Franklin Evans (1842). Participa com ardor da vida da cidade, e, apesar da reputação de dandy, não deixa de frequentar night-clubs e bares de má nota, nem prescinde de conviver com operários e marinheiros. Tem 29 anos quando lhe oferecem um lugar na redacção do Crescent, de Nova Orleães. Põe-se a caminho na companhia do irmão Jeff. Atravessa o Ohio e desce o Mississipi, «o rio mais importante do globo». Mais tarde, dirá: «Para melhor compreendermos quanto a poesia importada de Inglaterra ou de qualquer outro modo reproduzida e imitada aqui nos parece anacrónica [...], é necessário, asseguro-vos, ter viajado durante bastante tempo no Mississipi.» Instala-se no Vieux Carré, um bairro boémio (a antítese do preconceituoso Garden District), a miscigenação cultural da cidade fascina-o, mas a segregação social típica da Louisiana provoca nele uma rejeição natural. Ao fim de três meses, parte precipitadamente. Antes de regressar a Nova Iorque, onde editará o Brooklyn Freeman (1948-49), visita St. Louis e Chicago, atravessa o Michigan e vai até às cataratas do Niagara. Volta como free-lancer ao jornalismo, ajuda o pai na construção civil (com o mesmo desembaraço com que na adolescência havia alugado os braços à lavoura), trabalha numa papelaria e especula no imobiliário.

Leaves of Grass A morte do pai, Walter Whitman, ocorre em 1855. É o ano da primeira edição (anónima) de Leaves of Grass. O volume, de 100 páginas, não traz o nome do editor, nem o do autor. Apenas um retrato do poeta em mangas de camisa. O copyright é de Walter Whitman. Inclui doze cantos, sem título, o primeiro dos quais virá mais tarde a ser o emblemático «Song of Myself», que representa metade do conteúdo dessa edição inaugural: «Celebro-me e canto-me,/ E aquilo que assumo tu deves assumir,/ Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.// Vagueio e convido a minha alma,/ À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão [...] Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,/ Esperando que só a morte me faça parar.» O seu estilo determinado não atraiu o público e a generalidade da crítica. Um homem, porém, não hesita: R. W. Emerson [1803-1882] escreveu ao poeta, confessando ter «esfregado os olhos para ver se esse raio de luz não passava de uma visão», dizendo textualmente: «Encontro coisas incomparáveis, incomparavelmente ditas, como o devem ser.» A carta é naturalmente privada, mas Whitman publica-a, juntamente com a resposta, na 2.ª edição (1856). Na contracapa, aparece a célebre frase: «Saúdo-o no início de uma grande carreira.» E, em contraponto, transcreve no posfácio o conjunto dos insultos (mesmo os mais soezes) que a estreia provocou. Acusam-no de arrivismo por ter usado o nome impoluto e prestigiado de Emerson em proveito próprio. O volume vem assinado e inclui 32 poemas com título. É, como a primeira, uma edição de autor. A sociedade puritana da época reage com aspereza à ousadia de Whitman, a imprensa não o poupa, há quem peça o julgamento do autor, por «obscenidade». Na North American Review, escreve-se que o livro «não contém uma só palavra que se destine a atrair o leitor pela sua grosseria», e, no Intelligencer, de Boston, lê-se que «o autor devia ser corrido a pontapés de qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas». Na comunidade quaker, fazem-se autos-de--fé. O escândalo atemoriza os agentes, Fowler & Wells, que se desresponsabilizam. Emerson desloca-se de Concord (um subúrbio elegante de Boston) a Brooklyn, para o conhecer pessoalmente, e traz do encontro uma funda impressão. A poesia não o afasta do jornalismo. No Times, de Brooklyn, que edita entre 1857-59, escreve anoninamente textos laudatórios sobre si mesmo e acerca de Leaves of Grass. É a reacção à barragem hostil da crítica institucional, que via nele um «monstro». Alguns jornais chamam-lhe «itifálico», uma forma muito arrevesada de o injuriar, rotulando-o de homossexual (itifálicos seriam, por associação com o linga sânscrito da tradição hindu, os adoradores do falo). Emerson não desiste e envia um exemplar da obra a Carlyle [1795-1881], que ajudará a projectar o seu prestígio na Inglaterra. Quando, em 1860, vai a Boston para o lançamento da 3.ª edição (aumentada para 154 poemas), é já um autor reconhecido. Celebridades como Bronson Alcott, pedagogo e místico [1799--1888], H. D. Thoreau, escritor [1817--1862], ou Breck Trowbridge, arquitecto [1862-1925], não regateiam elogios e amizade. Trowbridge fala da emoção de um encontro comparável ao de Sócrates ou Salomão. O editor, Thayer & Eldridge, vai à falência no ano seguinte. Mas, como consequência do crescente sucesso junto daquele público que provavelmente teria inclinações «frenológicas»..., aparece nas bancas uma edição pirata de Leaves of Grass. Whitman é o ponto de chegada dos contrários: atacado violentamente pelos filisteus e incensado por amigos e correligionários. Tinha nascido a lenda: «[...] Os ecos estrilam com os nossos berros obscenos, e agarro no primeiro para amigo meu,/ Que seja um marginal, rude, analfabeto, marcado já por coisas que tem feito./ Vou deixar-me de representar, porque hei--de exilar-me de meus pares ?/ Ó vós, ó perseguidos, eu não vos persigo./ Eis que venho para o meio de vós a ser o vosso poeta,/ Mais serei vosso do que de todos os outros.» Jorge de Sena dirá que Whitman foi «um Verlaine sem senso do pecado, e com um sentido da grandeza e da majestade do mundo e da vida, que Verlaine não teve».

A Guerra da Secessão Whitman tinha quase 42 anos quando rebentou a guerra civil (1860--65). Estava então em Brooklyn, na companhia da mãe, e colaborava num semanário, o Standard. Tinha uma preocupação: encontrar editor para a 4.ª edição de Leaves of Grass. O irmão mais novo, George, tinha-se alistado como voluntário. O patriotismo de Whitman vai encontrar eco em Drum--Taps (1865), núcleo de poemas patrióticos que chegou a ter edição em volume. Na edição definitiva de Leaves of Grass (considera-se como tal a 7.ª, de 1881), esse conjunto, aumentado com os poemas de Sequel to Drum-Taps (1866), corresponde a uma das sequências autónomas. Os anos da guerra foram uma dolorosa experiência. Em Dezembro de 1862, tinha recebido a notícia do ferimento do irmão, durante a primeira batalha de Fredericksburg (Virgínia). Partiu imediatamente para Washington, fez uma busca exaustiva nos hospitais de campanha, instalados em igrejas e mansões, mas tudo em vão. O périplo deu-lhe uma imagem inescapável do conflito. Vai então para o front e encontra George, cujo ferimento não era grave. Mas, pela primeira vez na vida, viu a morte de muito perto. Mais de uma vez, assistiu a amputações. As epidemias alastram, o tifo e as desinterias são implacáveis. Está cercado de feridos e moribundos. Na ronda dos hospitais, onde se tornou uma figura familiar junto dos soldados, conforta esses rapazes na medida das suas possibilidades: incute-lhes coragem, escreve por eles as cartas, lê (histórias infantis, a Bíblia, poemas seus), ou faz-lhes simplesmente companhia. O relato dessa experiência foi mais tarde publicado em Memoranda During the War (1875-76). Durante a sua permanência em Washington, arranja emprego como escriturário, numa repartição pública ligada ao Departamento do Interior, graças ao empenho de Charles Eldridge, seu futuro editor, e de William Douglas O'Connor, um influente anti-esclavagista. No Inverno de 1865 conhece um adolescente irlandês, Peter Doyle, que se tornará o seu lendário companheiro. Escreve um diário e envia artigos para jornais do Norte: «Os sulistas, desesperados, cometem atrocidades, atacam os comboios, massacram feridos e prisioneiros. Os federados punem, vingam-se. A luta fratricida torna-se cada vez mais inumana [...] O Inferno, de Dante, com todas as suas dores, os seus tormentos imundos, não ultrapassa o espectáculo dessas prisões... e os mortos... os mortos... os nossos mortos.» Na opinião de Sena, as suas «reportagens da Guerra Civil da Secessão são obras-primas». A guerra provoca nele uma evolução ideológica decisiva, à luz da qual devem ser lidos poemas como «Beat! Beat! Drums!», «Bathed in War's Perfume» ou «Solid, Ironical, Rolling Orb». Na capital, assiste à segunda investidura de Lincoln: «Nunca vejo este homem sem deixar de sentir que é o tipo de pessoa por quem ficamos atraídos.» Porém, amargurava--o o facto de ver o presidente como símbolo da divisão do país. A guerra prossegue. Whitman dinamiza uma cadeia de solidariedade social (algo afim daquilo que hoje são algumas ONG) que recolhe e administra fundos e donativos oriundos de toda a nação americana.

Amante das nove musas Os burocratas são o que são, e, um dia, James Harlan, Secretário do Interior, demite Walt Whitman do modesto posto que este ocupava em Washington. O móbil era a «indecência» de Leaves of Grass... Nem a influência de Trowbridge demoveu o futuro senador, e a exoneração consumou-se. Até o vestuário de Whitman serviu de pretexto: evocava a «clássica silhueta do plantador sulista»! Um grupo de amigos bem colocados intercede junto dos círculos oficiais, e o Procurador-Geral acolhe-o no Ministério da Justiça, como assalariado (1865-74). Entretanto, uma gripe afasta-o por uns tempos da capital. Regressa antes da capitulação do general Lee, a 9 de Abril de 1865. A União triunfou. Dias depois, a 14, Lincoln morre às mãos de um sulista fanático, John Wilkes Booth. Whitman era um unionista convicto, e o assassinato de Lincoln provocou nele uma angústia desmedida. Escreve, sob o efeito da tragédia, «When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd», uma elegia que é considerada um dos textos mais tocantes da literatura americana de todos os tempos (Whitman editou-a numa pequena brochura, acolhida com indiferença no tumultuado rescaldo do conflito). O eco da sua reputação alastra: Burroughs publica na Galaxy um ensaio sobre o homem e o poeta, enquanto William Douglas O'Connor edita um panfleto apologético, O Bom Poeta dos Cabelos Grisalhos, onde, sem rodeios, faz a defesa desassombrada do amigo. Também se deve a O'Connor o plano de divulgação, nas páginas do New York Times, da 4.ª edição (1867) de Leaves of Grass, custeada pelo autor. Inclui oito novos poemas. A crítica «oficiosa» continua alérgica: «[...] Sou tão delicado com os intestinos como com a cabeça e o coração,/ Para mim a cópula não é mais grosseira do que a morte.// Creio na carne e nos apetites,/ A vista, o ouvido, o tacto, são milagres, e cada parte, cada migalha de mim, é um milagre.// Sou divino por dentro e por fora, e santifico tudo o que toca ou me toca,/ O odor destas axilas é mais belo que uma oração,/ Esta cabeça mais do que os templos, as bíblias e todos os credos [...].» Vendem-se apenas 100 exemplares. Mas, na Inglaterra, Carlyle, Ruskin, Swinburne (que o punha ao nível de Blake) e Anne Gilchrist, com quem se correspondeu regularmente e que se tornará uma das suas maiores amigas, fazem com que seja um autor respeitado. O pré-rafaelita William M. Rossetti (irmão do pintor Dante Gabriel Rossetti), edita Poems by Walt Whitman (1868), e Edward Dowden, uma autoridade em estudos shakespearianos, escreve Poesia e Democracia a pretexto de Leaves of Grass. Na Alemanha, em França e na Dinamarca, a ressonância é menor, mas a sua obra começa a ser um património comum. Em 1915 (isto é, com o proverbial atraso de sempre), Portugal entra no coro. Pela boca de Álvaro de Campos, Pessoa saúda-o num poema torrencial: «De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,/ Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,/ Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,/ Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,/ Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser.../ Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,/ Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo--te e amo-te [...]». O engenheiro sensacionista não fez a coisa por menos e comparou a obra de Whitman a «uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma». Ofélia Queiroz nunca foi capaz de tanto.

The Good Gray Poet O ano de 1871 é o da emancipação dos negros e da XIV Emenda à Constituição (que lhes dá o direito de votar). É também o ano da Exposição Internacional de Nova Iorque, onde Whitman declama alguns poemas inéditos, e o da 5.ª edição de Leaves of Grass, de que são feitas duas tiragens com poucos meses de intervalo. A colectânea colige agora um total de 273 poemas. Publica, ainda nesse ano, Democratic Vistas. O estilo é seco e descritivo. A obra questiona a corrupção social e política daqueles tempos. No ano seguinte vai a Hanover, no New Hampshire, a convite do Dartmouth College, uma universidade de tradições liberais. E, em 1873, sofre dois reveses significativos. A 23 de Janeiro, fica paralisado do lado esquerdo. Corolário da temida «malária dos hospitais», que lhe havia sido diagnosticada em 1869? Peter Doyle não abandona a sua cabeceira. Os tratamentos eléctricos e a robustez física fazem o resto. Em Abril, recuperou parte da antiga agilidade. Mas, a 23 de Maio, Louisa Van Velsor, sua mãe, morre. Foi para ele o mais rude dos golpes. Tem crises de hemiplegia pertinaz, deixa-se abater, está um farrapo. Vai viver para casa do irmão George, em Camden (New Jersey). Ainda não recuperado da depressão, fisicamente debilitado, é informado, em Julho de 1874, da sua demissão do Ministério da Justiça. A imprensa sensacionalista lançara outra onda de insinuações torpes: perde o emprego. Não desiste. Em 1876, faz sair dos prelos a 6.ª edição de Leaves of Grass (chamada «do centenário» por coincidir com o centenário da declaração de independência dos Estados Unidos), manualmente composta por si, em Camden, na tipografia de um amigo. A obra aparece desta vez em dois volumes: o 1.º reproduz a edição anterior e no 2.º aparecem os ensaios e vinte poemas inéditos. Divide agora o seu tempo entre Camden e Filadélfia, onde vivia Anne Gilchrist [1828-1885]. A autora de Life of Etty (1855), estudiosa e biógrafa de Blake e Mary Lamb, grande admiradora da poesia de Whitman, viveu nos Estados Unidos entre 1876-1879, tendo ajudado a aglutinar à volta do amigo um elo de apoios materiais e cumplicidades electivas. Em 1879, Whitman faz a sua primeira viagem ao Oeste. Está meio-paralítico, tem 60 anos, mas vai até ao outro lado do continente: parte de Filadélfia e atravessa as Montanhas Rochosas. Em Specimen Days (1882), dirá: «Interrogo--me, na verdade, sobre se os habitantes deste interior do Continente, do Oeste Americano, sabem que arte de primeira ordem possuem nestas pradarias. [...] Se soubessem como essas pradarias correspondem absolutamente em grandeza ao firmamento e ao oceano com as suas vagas? Como elas alargam, acalmam, alimentam a nossa alma?» Sena traça com impressionante nitidez o retrato do poeta: «Os seus costumes, a sua franqueza, o seu erotismo, o seu radicalismo político, a sua expressão anaforicamente tumultuária e repetitiva, o seu gosto das apóstrofes e das enumerações, o seu verso esplêndidamente livre, é muito escândalo junto para ele ser o poeta nacional que ninguém foi como ele, ainda que muito mais por crença na democracia que por nacionalismo.»

Ícone panteísta Em 1882 publica Collect, que inclui relatos do tempo da guerra civil. É ainda nesse ano que conhece Oscar Wilde, então com 28 anos. Wilde está de visita a Nova Iorque para uma série de conferências a pretexto do lançamento do seu primeiro livro de poemas. Por essa altura, a opinião pública volta a ser agitada com o espectro dos bons costumes. Uma auto-intitulada Sociedade Para a Supressão do Vício patrocina, no Literary World, um inquérito público, de contornos duvidosos, com o intuito de bloquear futuras edições de Leaves of Grass. No ano anterior havia sido publicada a 7.ª, com o canon definitivo. Mesmo entre escritores e intelectuais, as opiniões dividem-se. Henry James [1843-1916], por exemplo, considerava a sua poesia «ofensiva» da arte. Não é de admirar. Sobre Oscar Wilde [1854-1900], que encontrou em Nova Iorque numa reunião social, debita que se trata de «um porco enfatuado». Os ânimos exaltam-se, o editor James R. Osgood, de Boston, suspende a distribuição da obra (devido a pressões do promotor público), a imprensa popular enfatiza os insultos, Douglas O'Connor contrapõe com veemência no New York Tribune, enquanto outro jornal, o Herald Tribune, toma partido por Whitman. A polémica atravessa o Atlântico. Os libertários fazem dele a sua bandeira. É natural. Um poema como «I Sing the Body Electric», de 1855, sintetiza todo um programa de libertação (e mística) sexual. Na Inglaterra, na Alemanha e em França, é a glória. Os novos editores são Rees Welsh e David McKay, ambos de Filadélfia. Em 1888 sofre novo ataque de paralisia, mais grave que os anteriores. Nesse ano, com o apoio mecenático de Horace Traubel, vê publicados dois novos volumes: November Boughs, que reúne 62 poemas inéditos, e Complete Poems and Prose of Walt Whitman, um catarpácio de 900 páginas. A 8.ª edição (1889), publicada simultaneamente em Glasgow, na Escócia, esgota rapidamente: «Quando soube ao fim do dia que o meu nome fora aplaudido no Capitólio, mesmo assim nessa noite não fui feliz,/ E quando me embriaguei ou quando se realizaram os meus planos, nem assim fui feliz [...] E quando pensei que o meu querido amigo, meu amante, já vinha a caminho, então fui feliz [...] Porque aquele a quem mais amo dormia a meu lado sob a mesma manta na noite fresca,/ Na quietude daquela lua de outono o seu rosto inclinava-se para mim,/ E o seu braço repousava levemente sobre o meu peito — nessa noite fui feliz.» Porém, quando John Addington Symonds, num ensaio justamente célebre, «explica» os poemas de Calamus à luz da homossexualidade do poeta, Whitman reage indignado: «I have had six children.» É um desabafo ridículo, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Whitman sabia-o. Estaria ele a piscar o olho à posteridade «respeitável»? Infelizmente o argumento fez escola, mesmo, ou sobretudo, entre autores que, ainda hoje, reivindicam o estatuto de artiste maudit. Mais tarde, D. H. Lawrence [1885--1930] faria notar aquilo que considerava os aspectos disfóricos e o desespero suicida da escrita whitmaniana. A 9.ª edição de Leaves of Grass, também conhecida por «deathbed edition», foi preparada numa altura em que o poeta se encontrava já muito doente. Fez as correcções finais e deu por «authorized» um corpus de 411 poemas. A 26 de Março de 1892, aos 72 anos, morre paralítico. Foi sepultado em Camden (New Jersey). Tinha sobrevivido três semanas ao lançamento de Complete Prose Works, que McKay editou num único volume. Setenta anos mais tarde, seria o ícone subliminar de duas gerações contestatárias. As doutrinas libertárias dos sixties, o folclore hippy, o pacifismo, a ressaca dos «guerreiros» do Vietnam (que seria uma espécie de ressaca «sulista» actualizada, como num processo de transfert), as conquistas da ecologia, as exigências do black power e a afirmação planetária do movimento gay, pese sempre o americaníssimo tiro de partida, tudo situações que a obra de Whitman prenunciou. Ezra Pound [1885-1972] havia feito o diagnóstico correcto, quando escreveu que ele era um génio «porque tem consciência do que é, e da sua função. Sabe que é um ponto de partida e não uma obra acabada à maneira clássica». O culto à sua memória tem-se manifestado sob todas as formas. Uma das mais bizarras relaciona-se com o misterioso desaparecimento dos seus Notebooks: roubados em 1942 da Biblioteca do Congresso, em Washington, foram devolvidos em 1995, precisamente no dia 24 de Fevereiro. A 10.ª edição de Leaves of Grass foi publicada cinco anos depois da sua morte, incluindo os seis poemas de Old Age Echoes, até então inéditos. O conjunto da sua obra (poesia e prosa) encontra-se coligido em The Collected Writings of Walt Whitman, 24 volumes editados entre 1961 e 1984.


A América do Norte na poesia de Walt Whitman e Allen Ginsberg

Enquanto, Walt Whitman no século XIX elogiava o progresso da América do Norte em direção ao bem estar e às conquistas tecnológicas, no século XX, Allen Ginsberg da Geração Beat criticava este sistema de vida. Mesmo havendo uma ruptura na visão temática dos dois poetas, algo os aproxima, a imagem da América. Tanto em seu desenvolvimento industrial para Whitman, quanto em sua participação na II Guerra mundial para Ginsberg, como seu progressivo sistema de vida, sua defesa da Liberdade, elementos que motivaram tematicamente a ambos. América, poema de Allen Ginsberg, contém uma relação profunda com a poesia Whitmaniana. Esta relação baseia-se no foco distinto da imagem americana, tal imagem abordada de maneira divergente, mas dotada de um lirismo singular e original que marca estes dois poetas separados pelo tempo e unidos pela mesma geografia.
Aqui analisaremos três poemas de Whitman sobre a América para estabelecer uma interxtualidade com a poesia ginsberiana: Ouço o canto da América, Canto do Universal e Anos de Modernidade.

Walt Whitman
Nova York, 1887, pelo fotógrafo George C. Cox


Ocupemo-nos do primeiro poema citado:

Ouço o canto da América, as diferentes canções escuto,
A dos mecânicos, cada qual cantando a sua, como deveria ser, alegre e forte,
O carpinteiro a cantar a dele, enquanto mede prancha ou viga,
O pedreiro a erguer sua canção, enquanto se prepara para o trabalho
ou deixa o trabalho,
O barqueiro a cantar o que lhe ocorre no barco, o marinheiro a cantar no
tombadilho do navio,
O sapateiro a cantar sentado no banco, o chapeleiro a cantar de pé,
O canto do lenheiro, do lavrador a caminho, pela manhã,
ou na pausa do meio-dia ou ao pôr do Sol,
O delicioso canto da mãe, ou da jovem esposa a trabalhar,
ou da moça costurando ou lavando,
Cada qual cantando o que se refere a ele ou a ela e a ninguém mais,
De dia o que pertence ao dia – de noite a reunião de jovens companheiros,
robustos, cordiais,
A cantar, descerrados os lábios, suas canções fortes e melodiosas.

Whitman canta a América, canta a vida norte-americana, canta o Estado americano, canta os vagabundos, os trabalhadores, a família dos EUA. Canta porque acredita nesta América, canta o progresso americano, porque é americano, canta o individualismo (como ele mesmo escreveu em seu poema Eu canto o indivíduo), o capitalismo, e orgulha-se de viver assim egoicamente, voltado só para si e então para a vida. Esta temática é focada e reforçada em toda sua poesia. Whitman não tem uma visão triste de sua América, ao contrário, a vê com alegria e entusiasmo, não só sua época, mas o futuro de toda a América, ela Norte, Central e Sul, por isto ele afirma sua universalidade em Canto do Universal:

E tu, América,
Para a culminação do plano, sua idéia e sua realidade,
Para isso (e não para ti mesma) tu chegaste.
Também tu abranges tudo,
Abraçando, levando, acolhendo tudo, tu também, por largos e novos
caminhos,
Diriges-te para o ideal.

Walt Whitman declara que a América avança para um fim que já existe em seu interior, uma declaração, por certo, teleológica.

No poema Anos de Modernidade o poeta diz:

Anos de modernidade! Anos do que ainda não foi feito!
Ergue-se o vosso horizonte, vejo-o afastando-se para mais augustos dramas,
Não vejo apenas a América, não somente a nação da Liberdade, mas as outras nações preparando-se,
Vejo tremendas entradas e saídas, novas combinações, a solidariedade das raças, ...
Vejo a Liberdade, completamente armada e vitoriosa e bem altiva com a Lei a um lado e a Paz do outro, ...
Vossos sonhos, ó anos como me imbuem!
(não sei se estou dormindo ou se estou desperto;)
As irrealizadas, mais gigantescas do que nunca, avançam, avançam ao meu encontro.

Como foi dito antes, Whitman enaltece o futuro, o homem, o Estado e os ideais do Estado e sente-se realizado neste grau de existência, enquanto Baudelaire prefere o outro mundo Whitman quer este mundo e este mesmo mundo é que ele celebra. Nos seus poemas, ele eleva a condição do homem moderno, celebrando a natureza humana e a vida em geral em termos pouco convencionais. Whitman exprime em poemas visionários certo panteísmo e um ideal de unidade cósmica que o Eu representa, além de uma profunda identificação com os ideais democráticos da nação americana, nunca deixando de celebrar o futuro da América.

Ginsberg, por sua vez, contesta esta América, contesta o Estado, contesta o mundo, embora apaixonado pelo homem.

América eu te dei tudo e agora não sou nada.
América dois dólares vinte e sete centavos 17 de janeiro de 1956.
América não agüento mais minha própria mente.
América quando acabaremos com a guerra humana?
Vá se foder com sua bomba atômica.
Não estou legal não me encha o saco.
Não escreverei meu poema enquanto não me sentir legal.
América quando é que você será angelical?
Quando você tirará sua roupa?
Quando você se olhará através do túmulo?
Quando você merecerá seu milhão de trotskistas?
América porque suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?
América quando você mandará seus ovos para a Índia?
Eu estou cheio das suas exigências malucas.
Quando poderei entrar no supermercado e comprar o que preciso só com minha boa aparência?
América afinal eu e você é que somos perfeitos e não o outro mundo.
Sua maquinaria é demais para mim.
Você me fez querer ser santo.
...).
Estará você sendo sinistra ou isso é uma brincadeira?
Estou tentando entrar no assunto.
Eu me recuso a desistir das minhas obsessões.
América pare de me empurrar sei o que estou fazendo.
América as pétalas das ameixeiras estão caindo.
...).
América eu era comunista quando criança e não me arrependo.
...).
Passa pela minha cabeça que eu sou a América.
Estou de novo falando sozinho.
A Ásia se ergue contra mim.
Não tenho nenhuma chance de chinês.
É bom eu verificar meus recursos nacionais.
Meus recursos nacionais consistem em dois cigarros de maconha milhões de genitais uma literatura pessoal impublicável a 2.000 quilômetros por hora e vinte e cinco mil hospícios.
Nem falo das minhas prisões ou dos milhões de desprivilegiados que vivem nos meus vasos de flores à luz de quinhentos sóis.
...).
Ambiciono a Presidência apesar de ser Católico.
...).
Continuarei como Henry Ford meus versos são tão individuais como seus carros mais ainda todos têm sexos diferentes.
...).
América liberte Tom Mooney.
América salve os legalistas espanhóis
...).
América a verdade é que você não quer ir à guerra.
Os Russos os Russos e esses Chineses. E esses Russos.
A Rússia nos quer comer vivos. O poder da Rússia é louco. Ela quer tirar nossos carros de nossas garagens.
...).
É verdade que não quero me alistar no Exército ou girar tornos em fábricas de peças de precisão. De qualquer forma sou míope e psicopata.
América eu estou encostando meu delicado ombro à roda.

Ginsberg está criticando sua época, um período tomado pela perseguição política,- o machartismo -, pela Guerra Fria, pela perda dos valores americanos, critica o american way life, critica o preconceito americano aos estrangeiros, o medo americano de uma ameaça ideal, o sistema americano de viver, por fim, Ginsberg comenta a queda americana face ao surgimento de novas potências e ao desequilíbrio interno que surge por se auto-considerar “perfeita”.


No poema Morte à orelha de Van Gogh! O poeta se auto-intitulando sacerdote, protesta e profetiza:

O dinheiro contabilizou a alma da América.
O Congresso desabou no precipício da Eternidade.
...).
O Século Americano foi traído por um Senado louco que não dorme mais com sua mulher.
Franco assassinou Lorca o filho queridinho de Whitman assim como Maiakovski se suicidou para evitar a Rússia Hart Crane Platônico insigne se suicidou para soterrar a América errada
assim como milhões de toneladas de cereal humano foram queimados em porões secretos sob a Casa Branca enquanto a Índia morria de fome e gritava e comia cachorros loucos encharcados de chuva
e montões de ovos eram reduzidos a pó branco nos corredores do Congresso
nenhum homem temente a Deus andará de novo por lá por causa do fedor dos ovos podres da América
...).
mas eu caminho, eu caminho e o Oriente caminha comigo e toda a África caminha
e mais cedo ou mais tarde a América do Norte também caminhará
pois assim como expulsamos o Anjo Chinês da nossa porta, ele também nos expulsará da Porta Dourada do futuro
nós não mostramos piedade para Tanganica
Einstein em vida recebeu zombarias por sua política celestial
Bertrand Russel expulso de Nova York por trepar
e o imortal Chaplin foi expulso das nossas praias com a rosa entre os dentes
uma conspiração secreta da Igreja Católica nos mictórios do Congresso negou anticoncepcionais ás incessantes massas da Índia
Ninguém publica uma palavra que não seja delírio covarde de um robô com mentalidade depravada
o dia da publicação da verdadeira literatura do corpo americano será o dia da Revolução a revolução do cordeiro sexual
a única revolução incruenta que distribuirá cereais
o pobre Genet iluminará os que trabalham nas colheitas de Ohio
...).
Não vejo nada a não ser bombas
não estou interessado em impedir que a Ásia seja Ásia
e os governos da Rússia e da Ásia se erguerão e cairão mas a Ásia e a Rússia não cairão
o governo da América também cairá mas como pode a América cair
duvido que mais alguém venha a cair alguma vez a não ser os governos
felizmente todos os governos cairão
os únicos que não cairão serão os bons
e os bons governos ainda não existem
Mas eles precisam começar a existir eles existem nos meus poemas
Eles existem na morte dos governos da Rússia e da América
...).
Esta é a hora da profecia sem morte como conseqüência o universo acabará por desaparecer
...).
A História tomará profético este poema e sua horrível estupidez será uma hedionda música espiritual
Eu tenho o arrulhar das pombas e a pluma do êxtase
O Homem não pode agüentar mais a fome da abstração canibal
A guerra é abstrata
O mundo será destruído
mas eu só morrerei pela poesia que salvará o mundo.

Inconformado com seu tempo, com sua América, Ginsberg profetiza a queda do Império e de todos os Impérios. Para ele, somente a poesia salvaria o homem do seu estado de miséria. Para ele o “dinheiro contabilizou a alma americana”, embora diga que a América esta em decadência por ter-se tornado egoísta negando ajuda o outros países, crê que esta América ainda caminhará com ele para algo melhor, crê, ainda que diga que esta mesma América, onde pôs sua fé, cairá por seus próprios pés.

Vemos um poema como o autor mesmo diz, profético, como os profetas bíblicos e, portanto, atual, haja vista que, hoje, a América do Norte encontra-se em decadência ameaçada pelos países da Europa e da Ásia Oriental e Ocidental.
Um dia, e aí esta a liberdade do poema e do poeta, a poesia salvará o homem pela mesma poesia.

Nota-se a diferença de abordagem de um mesmo tema: América, por cada um dos autores. Enquanto Whitman enaltece esta América, Ginsberg a contesta, mas cada um motivado por um período diferente, um no desenvolvimento industrial outro no tempo de entre guerras. Nestes poetas há, portanto, duas Américas: a América que cria suas raízes na terra em forma de arranha-céus, representada pelas destruídas Duas Torres, e, uma América em queda, — como o homem mítico que caiu pelo próprio pecado —, pela queda das Duas Torres.

A partir destes autores percebemos a mudança simbólica da América do Norte, da esperança à descrença, e, após seis anos, desde o 11 de setembro, perguntamos-nos se poesia deve surgir para esta América que ainda se ergue das cinzas.

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