segunda-feira, 6 de março de 2017

Memoria de Natal, Truman Capote



Truman Streckfus Persons – Truman Capote – (1924-1984) escritor norte-americano mundialmente conhecido por seus romances Breakfast’s at Tiffany e A Sangue Frio, começou sua carreira escrevendo contos. “Memoria de Natal”, um conto autobiográfico, foi escrito em 1956 e aparece frequentemente em antologias de grandes contos norte-americanos. Uma obra de arte.

Memoria de Natal
                                                    Truman Capote
 
Tradução de Samuel Titan Jr.  

Imagine certa manhã em fins de novembro. Certa manhã num começo de inverno há mais de vinte anos. Tenha em mente a cozinha de uma velha casa espaçosa numa cidade de interior. A peça principal é um belo fogão preto; mas também há uma grande mesa redonda e uma lareira com duas cadeiras de balanço em frente. Hoje mesmo a lareira deu início ao seu rugido sazonal.
Uma mulher de cabelos brancos e tosados está postada diante da janela da cozinha. Usa um par de tênis e um suéter cinza disforme sobre um vestido leve de chita. É baixinha e vivaz como uma galinha garnisé; mas, por conta de uma longa doença na juventude, tem os ombros lamentavelmente arqueados. O rosto é notável — lembra o de Lincoln, marcado como o dele e tingido pelo sol e pelo vento; mas também é delicado, bem desenhado, e os olhos são tímidos e cor de xerez. “Ah”, exclama, o hálito embaçando a vidraça, “é tempo de bolo de frutas!”
Ela está falando comigo. Tenho sete anos; ela tem sessenta e tantos. Somos primos bem distantes e vivemos juntos — pelo menos, desde quando me lembro. Outras pessoas, nossos parentes, moram na casa; e, muito embora tenham poder sobre nós e volta e meia nos façam chorar, em geral não damos muita atenção a elas. Somos o melhor amigo um do outro. Ela me chama de Buddy, em consideração a um menino que foi seu melhor amigo em outros tempos. O outro Buddy morreu lá pela década de 1880, quando ela ainda era uma criança. Ela ainda é uma criança.
“Eu sabia antes de levantar”, ela diz, dando as costas à janela com um alvoroço decidido nos olhos. “O sino da prefeitura soou tão frio e claro. E não havia nenhum passarinho cantando; já foram para algum lugar mais quente, foram, sim. Ah, Buddy, pare de se empanturrar de biscoito e vá buscar a carreta. Veja se encontra o meu chapéu. Temos de assar trinta bolos.”
É sempre a mesma história: chega uma certa manhã de novembro, e minha amiga, como se inaugurasse oficialmente a temporada de Natal que lhe anima a fantasia e aquece o coração, anuncia: “É tempo de bolo de frutas! Vá buscar a carreta! Veja se encontra o meu chapéu”.
O chapéu é encontrado, um chapéu redondo de palha, enfeitado com rosas de veludo desbotadas; já pertenceu a uma parenta mais elegante. Juntos, conduzimos nossa carreta, um carrinho de bebê caindo aos pedaços, para o jardim e para um arvoredo de nogueiras-pecãs. A carreta é minha, quer dizer, foi comprada para mim quando nasci. É feita de vime, está um tanto surrada, e as rodas cambaleiam como as pernas de um bêbado. Mas é um objeto leal; na primavera, nós a levamos aos bosques e a enchemos de flores, arbustos e samambaias selvagens para os vasos da varanda; no verão, a entulhamos com a parafernália de piquenique e as varas de cana e descemos até a beira de um riacho; ela também tem serventia no inverno: como caçamba para carrear lenha do quintal para a cozinha, como cama quente para Queenie, a corajosa terrier branca e laranja que caça ratos e sobreviveu ao mau humor alheio e a duas mordidas de cascavel. Neste momento, Queenie vem trotando ao lado dela.
Três horas depois, estamos de volta à cozinha, descascando um vultoso carregamento de pecãs derrubadas pelo vento. Nossas costas doem de tanto nos agacharmos para catá-las: foi difícil encontrá-las (o grosso da safra tinha sido chacoalhado das árvores e vendido pelos donos do pomar, que não somos nós), escondidas no meio das folhas, da grama enregelada e traiçoeira. Craaaque! Um rangido jovial, estalos de trovão em miniatura ressoam quando as cascas se rompem, e vai crescendo o montículo de polpa doce, oleosa e esbranquiçada na tigela opalina. Queenie quer provar, e de tanto em tanto minha amiga surrupia um pedacinho, sempre comentando a falta que esse pouco vai fazer.  “Não pode, Buddy. Se a gente começar, não para mais. E o que tem mal dá para o começo. São trinta bolos.”
A cozinha começa a escurecer. A penumbra transforma a janela em espelho: nossos reflexos se misturam à lua nascente, enquanto trabalhamos à luz da lareira. Por fim, quando a lua já vai alta, jogamos no fogo a última casca e suspiramos ao vê-la queimar. A carreta está vazia, a tigela está cheia até a borda. Jantamos (biscoitos, bacon, geleia de amora-preta) e falamos do dia seguinte.
Começa nesse dia o trabalho de que mais gosto: as compras. Cerejas e cidras, gengibre, baunilha e abacaxi em lata, frutas caramelizadas, uvas-passas e nozes e uísque e, ah, tanta farinha e manteiga, tantos ovos, especiarias, essências; desse jeito, vamos precisar de um pônei para puxar a carreta. Mas, antes que as compras possam ser feitas, há a questão do dinheiro. Nós dois não temos nenhum. Exceto pelas ninharias sovinas que as pessoas da casa nos dão (dez centavos são considerados uma dinheirama); ou pelo que nós mesmos arrecadamos em várias atividades: montando um bazar de velharias, vendendo baldes de amoras-pretas catadas uma a uma, potes de geleia caseira, gelatina de maçã e compota de pêssego, colhendo flores para funerais e casamentos.
Uma vez, ficamos com o septuagésimo nono prêmio, cinco dólares, de um concurso nacional de futebol. Não entendemos nada de futebol. É que simplesmente entramos em todo concurso de que ouvimos falar: no momento, nossas esperanças recaem no grande prêmio de cinquenta mil dólares oferecido a quem der o melhor nome a uma nova marca de café (sugerimos “am”, e, depois de alguma hesitação, pois minha amiga pensou que talvez isso fosse sacrílego, acrescentamos o slogan “am! Amém!”).
Para dizer a verdade, nosso único empreendimento realmente lucrativo foi o Museu de Monstros e Milagres, que montamos num telheiro do quintal, dois verões atrás. Os Milagres eram um estereoscópio com cromos de panoramas de Washington e de Nova York, cedidos por uma parenta que estivera nesses lugares (ela ficou furiosa ao descobrir por que tínhamos pedido os cromos emprestados); os Monstros se resumiam a um pintinho de três patas, chocado por uma de nossas galinhas. Todo mundo nas redondezas queria ver o pintinho: cobrávamos cinco centavos dos adultos e dois das crianças. E embolsamos uns bons vinte dólares antes que o museu fechasse em virtude do falecimento de sua atração principal.
Mas, de um modo ou de outro, todo ano fazemos nossas economias de Natal, nosso Fundo Bolo de Frutas. Mantemos esse dinheiro escondido numa velha bolsa de contas guardada embaixo de uma tábua solta do piso embaixo do penico embaixo da cama da minha amiga. A bolsa raramente é removida desse lugar seguro, exceto quando fazemos um depósito ou, como acontece todo sábado, um saque; pois aos sábados tenho direito a dez centavos para ir ao cinema. Minha amiga nunca foi ao cinema, nem pretende: “Prefiro ouvir você contar a história, Buddy. Assim posso imaginar mais. Além disso, uma pessoa da minha idade precisa economizar a vista. Quando o Senhor chegar, quero ver tudo direitinho”. Além de jamais ter visto um filme, ela jamais: comeu num restaurante, viajou além de oito quilômetros da casa, recebeu ou enviou um telegrama, leu nada diferente dos quadrinhos ou da Bíblia, usou maquiagem, praguejou, desejou mal a ninguém, mentiu de caso pensado, deixou um cão faminto continuar com fome.
E aqui vão algumas coisas que ela fez e faz: matou com uma enxada a maior cascavel (com dezesseis guizos) que já se viu no condado, cheira rapé (em segredo), domestica beija-flores (tente fazer isso) até que venham pousar num dedo, conta histórias de fantasmas (nós dois acreditamos em fantasmas) de dar calafrios no meio do verão, fala sozinha, passeia na chuva, cultiva as camélias mais bonitas das redondezas, sabe a receita de todo tipo de antigas poções indígenas, até mesmo a de um mágico removedor de verrugas.
Agora, terminado o jantar, vamos nos retirar para o quarto, que fica bem nos fundos da casa; é lá que minha amiga dorme, numa cama de metal pintada de rosa, que é sua cor preferida, e coberta por uma colcha de retalhos. Silenciosamente, chafurdando nos prazeres da conspiração, tiramos a bolsa de contas do esconderijo e espalhamos o conteúdo dela sobre a colcha de retalhos. Notas de um dólar, bem enroladas e verdes como brotos de primavera. Moedas sombrias de cinquenta centavos, pesadas o bastante para fechar os olhos de um morto. Lindas moedas de dez, as mais alegres, as únicas que tilintam de verdade. Moedas de cinco e de vinte e cinco, lisas como pedras de córrego. Mas, na maior parte, um monte odioso de centavos azedos. No verão passado, as demais pessoas da casa nos ofereceram um centavo a cada vinte e cinco moscas mortas. Ah, a matança de agosto: as moscas que subiram aos céus! Mas não foi um trabalho que nos desse orgulho. E agora, contando os centavos, é como se novamente contabilizássemos moscas mortas. Nenhum de nós é bom de números; contamos devagar, nos perdemos, recomeçamos. Segundo os cálculos dela, temos doze dólares e setenta e três centavos; segundo os meus, exatamente treze dólares. “Espero que você esteja errado, Buddy. Não se brinca com o número 13. Os bolos vão murchar. Ou alguém vai parar no cemitério. Meu Deus, por nada deste mundo eu sairia da cama num dia 13.” É verdade: ela sempre passa o dia 13 na cama. Assim, por via das dúvidas, subtraímos um centavo e o jogamos pela janela.
Dos ingredientes para o bolo de frutas, o uísque é o mais caro e também o mais difícil de conseguir: as leis estaduais proíbem sua venda. Mas todo mundo sabe que se pode comprar uma garrafa do sr. Haha Jones. E, no dia seguinte, tendo concluído nossas compras mais prosaicas, seguimos para o endereço comercial do sr. Haha, um café “pecaminoso” (para citar a opinião pública), onde se dança e se come peixe frito, perto do rio. Já estivemos lá, e na mesma missão; mas, nos anos anteriores, fizemos negócio com a mulher de Haha, uma índia de pele escura feito iodo, cabelos descaradamente oxigenados e aparência exausta. Na verdade, jamais vimos o marido, mas ouvimos dizer que é índio também. Um gigante com cicatrizes de navalha no rosto. É chamado de Haha por ser um homem soturno, que nunca ri.
À medida que nos aproximamos do café (uma grande cabana de troncos, enfeitada por dentro e por fora com grinaldas feitas de lâmpadas berrantes, junto à margem enlameada do rio, à sombra de árvores carregadas de um musgo que toma conta dos galhos como uma neblina escura), nossos passos se tornam mais lentos. Até mesmo Queenie para de saracotear e segue ao nosso lado. Houve gente que morreu no café de Haha. Cortada em pedaços. Um golpe na cabeça. Há um caso que vai para o tribunal na semana que vem. É claro que esses acontecimentos se dão à noite, quando as luzes coloridas projetam sombras fantasiosas e a vitrola geme. Durante o dia, o café de Haha parece derreado e deserto.
Bato na porta, Queenie late, minha amiga chama: “Dona Haha? Senhora? Alguém em casa?”. Passos. A porta se abre. Nossos corações se viram pelo avesso. É o sr. Haha Jones em pessoa! E ele é um gigante; tem cicatrizes, e não ri. Não, ele nos encara com olhos satanicamente revirados e exige saber: “O que vocês querem com Haha?”. Por um instante, ficamos paralisados demais para responder. Mas logo minha amiga meio que recobra a voz, ao menos uma voz sussurrante: “Por favor, sr. Haha, gostaríamos de comprar um litro do seu melhor uísque”. Os olhos do índio reviram ainda mais. Quem diria? Haha está sorrindo! Rindo mesmo. “E qual de vocês é o bebum?”
“É para fazer bolo de frutas, sr. Haha. É para cozinhar.” Ele volta a ficar sério. Franze a testa. “Isso não é jeito de gastar uísque bom.” Mesmo assim, recua para o café sombrio e, segundos mais tarde, reaparece com uma garrafa de bebida sem rótulo, amarelo-margarida. Exibe o brilho à luz do sol e diz: “Dois dólares”. Pagamos com moedas de cinco, de dez e de um. De repente, quando o índio chacoalha as moedas na mão como um par de dados, seu rosto se descontrai. “Vamos fazer o seguinte”, propõe, vertendo o dinheiro de volta na bolsa de contas, “em vez de pagar com dinheiro, mandem um desses bolos para mim.” “Bem”, minha amiga comenta no caminho de volta, “eis um sujeito amável.
 Vamos pôr uma xícara de passas a mais no bolo dele.” O fogão preto, repleto de carvão e lenha, brilha como uma abóbora iluminada. Os batedores de ovos rodopiam, as colheres giram em vasilhas com manteiga e açúcar, a baunilha adoça, o gengibre tempera o ar; cheiros que se desmancham e pinicam o nariz, saturando a cozinha, inundando a casa, saindo para o mundo com as baforadas da chaminé. Em quatro dias o trabalho está feito. Trinta e um bolos, umedecidos com uísque, descansam nas janelas e nas prateleiras. Mas para quem? Para amigos. Não necessariamente para amigos próximos; na verdade, a maior parte foi feita para pessoas que talvez tenhamos visto uma vez, quando muito. Pessoas que caem nas nossas graças. Como o presidente Roosevelt. Como o reverendo e a Sra. J. C. Lucey, missionários batistas em Bornéu que vieram dar palestras aqui no inverno passado. Ou o amolador de facas, que visita a cidade duas vezes por ano. Ou Abner Packer, o motorista do ônibus que chega às seis de Mobile, o qual troca acenos conosco todo dia ao passar num turbilhão de poeira. Ou como os Wiston, um casal de jovens da Califórnia cujo carro, uma tarde, quebrou em frente à nossa casa e que passaram uma hora agradável conversando conosco na varanda (o jovem Sr. Wiston bateu uma foto nossa, a única que temos). Será que é porque minha amiga é tímida com todo mundo, exceto com estranhos, que todos esses estranhos e conhecidos casuais parecem ser nossos melhores amigos? Acho que sim. Além disso, nossos álbuns com papel timbrado da Casa Branca, mensagens esparsas da Califórnia e de Bornéu, e cartões-postais baratos do amolador de facas fazem que nos sintamos conectados a mundos momentosos que ficam além da cozinha com sua vista para um céu que nos detém.
Mas agora, em dezembro, um galho pelado de figueira arranha a vidraça. A cozinha está vazia, os bolos se foram; ontem carreamos os últimos até a agência do correio, onde o preço dos selos esvazia nossos bolsos. Estamos falidos. Eu me entristeço, mas minha amiga insiste em festejar — com dois dedos de uísque no fundo da garrafa de Haha. Queenie ganha uma colherada numa vasilha de café (ela gosta de café forte e com sabor de chicória). O resto dividimos em dois potes de geleia. Ficamos temerosos diante da perspectiva de beber uísque puro, cujo gosto provoca expressões contorcidas e arrepios de amargor. Mas aos poucos começamos a cantar, ao mesmo tempo, cada qual uma canção. Não sei a letra da minha, só sei: “Come on along, come on along, to the dark-town strutters’ ball”. Mas sei dançar, e é isto que finjo ser: um sapateador de cinema. Minha sombra dançante evolui nas paredes; nossas vozes fazem tremer a porcelana; rimos como se mãos invisíveis nos fizessem cócegas. Queenie rola pelo chão, suas patas escavam o ar, algo parecido com um sorriso estica seus lábios negros. Quanto a mim, sinto-me tão quente e faiscante quanto a lenha que desmorona na lareira, tão livre quanto o vento na chaminé. Minha amiga valsa ao redor do fogão, com a barra da pobre saia de chita presa entre os dedos como se fosse um vestido de festa: “Show me the way to go home”, ela canta, os tênis guinchando no assoalho. “Show me the way to go home.”
Entram dois parentes. Muito bravos. Poderosos, com olhos que recriminam e línguas que ralham. Ouvimos o que têm a dizer, as palavras martelam uma canção colérica: “Uma criança de sete anos fedendo a uísque! onde você está com a cabeça? uma criança de sete anos! ficou maluca? começa assim a desgraça! lembra da prima Kate? do tio Charlie? do cunhado do tio Charlie? uma vergonha, um escândalo, uma humilhação! de joelhos, reze, vamos, reze ao Senhor!”. Queenie se esgueira para debaixo do fogão. Minha amiga fixa os olhos nos sapatos, o queixo estremece, ela levanta a saia e assoa o nariz, depois corre para o quarto.
A cidade já foi dormir há muito tempo, e a casa está em silêncio, exceto pelo badalar dos relógios e pelos estalos do fogo moribundo, mas ela continua chorando num travesseiro úmido feito um lenço de viúva. “Não chore”, digo, sentado ao pé da cama e tiritando apesar do pijama de flanela, que guarda o cheiro do xarope para tosse do inverno passado, “não chore”, peço, brincando com os pés dela, fazendo cócegas nos dedos, “você é velha demais para isso.” “É que eu sou”, ela soluça, “eu sou velha demais. Velha e esquisita.” “Esquisita, não. Engraçada. Mais que todo mundo. Escute. Se não parar de chorar, estará tão cansada amanhã que não vai dar para a gente cortar a árvore.” Ela se apruma. Queenie pula para cima da cama (onde não é admitida) para lamber as bochechas da minha amiga. “Sei onde encontrar umas bem bonitas, Buddy. E são azevinhos. Com bagas do tamanho dos seus olhos. Ficam bem no meio do bosque. Mais longe do que você já foi. Papai nos trazia árvores de lá, ele as carregava no ombro. Isso já faz cinquenta anos. Bem, eu mal posso esperar por amanhã.”
De manhã. O orvalho congelado faz a relva brilhar; o sol, redondo feito uma laranja e laranja feito uma lua de verão, pende no horizonte, lustra os bosques prateados pelo inverno. Um peru selvagem gruguleja. Um porco desgarrado grunhe no meio do matagal. Logo chegamos à margem de cursos de água mais fundos e velozes, onde precisamos abandonar a carreta. Queenie é a primeira a vadear os riachos, nadando e latindo contra a rapidez da correnteza, num frio de pegar pneumonia.
Nós a seguimos, erguendo os sapatos e o equipamento (uma machadinha, um saco de aniagem) acima da cabeça. Mais um quilômetro e meio de espinhos que nos castigam, ouriços e sarças que se agarram em nossas roupas, folhas de pinheiro pontudas e cor de ferrugem, fungos coloridos e penas soltas. Aqui e ali, um relance, um alvoroço, nos lembram que nem todos os pássaros voaram para o sul. O caminho se desenrola entre poças amarelo-limão de sol e túneis escuros de trepadeiras. Outro córrego a cruzar: uma armada irrequieta de trutas pintadas remexe a água ao redor, e sapos do tamanho de um prato treinam mergulhos de barriga; castores trabalhadores constroem um dique.
Na outra margem, Queenie se sacode e estremece. Minha amiga está tremendo também, não de frio, mas de entusiasmo. De uma das rosas esfarrapadas do chapéu cai uma pétala quando ela levanta a cabeça e aspira o ar tomado pelo cheiro dos pinheiros. “Estamos quase lá, dá para sentir o cheiro, não dá, Buddy?”, ela diz, como se nos aproximássemos do oceano. E, de fato, é uma espécie de oceano. Acres aromáticos de árvores de Natal, azevinhos de folhas espinhentas. Framboesas rebrilham como sinetas de porcelana, corvos negros se precipitam aos berros sobre elas.
Tendo enchido nossos sacos de aniagem com galhos e bagas para enfeitar uma dúzia de janelas, passamos a escolher uma árvore. “Ela deve ter”, minha amiga pondera, “o dobro da altura de um menino. Para menino nenhum roubar a estrela.” Escolhemos uma com o dobro da minha altura. Um belo e bravo brutamontes que resiste a trinta golpes de machadinha antes de vergar e quebrar com um estalo. Arrastando-o como a uma presa, começamos a longa jornada de volta. A cada tantos metros abandonamos a luta, sentamos e ofegamos. Mas temos a força de caçadores triunfantes; isso e o perfume gélido e viril da árvore nos reavivam e nos tocam para a frente.
Muitos cumprimentos acompanham nosso retorno crepuscular pela estrada de terra roxa, rumo à cidade; mas minha amiga é escorregadia e evasiva quando os transeuntes elogiam o tesouro empoleirado na nossa carreta: que bela árvore, de onde veio? “Daqueles lados”, ela murmura vagamente. A certa altura, um carro para, e a mulher rica e preguiçosa do dono da usina se inclina para fora e gane: “Dou vinte e cinco por essa árvore aí”. Em geral, minha amiga tem medo de dizer não; mas dessa vez sacode de pronto a cabeça: “Nem por um dólar”. A mulher do dono da usina insiste. “Um dólar, nem pensar! Cinquenta centavos. Última oferta. Que é isso, mulher, você consegue outra.” Em resposta, minha amiga alega gentilmente: “Duvido. Não há duas coisas iguais neste mundo”. Em casa: Queenie desaba junto ao fogo e dorme até o dia seguinte, roncando alto feito um homem.
Um baú no sótão contém: uma caixa de sapatos com estolas de arminho (da pelerine usada em noites de ópera por uma senhora esquisita que uma vez alugou um quarto na casa), emaranhados de lantejoulas corroídas e amarelecidas pelo tempo, uma estrela prateada, uma fieira curta de lâmpadas com aspecto de doces, desencapada e certamente perigosa. Decorações excelentes, na medida do possível, o que não é muita coisa: minha amiga quer que a árvore resplandeça “que nem uma janela de família batista”, arriando sob a neve ornamental. Mas não temos dinheiro para os esplendores made in Japan da loja de artigos populares. De modo que fazemos o que sempre fizemos: sentamos por dias e dias à mesa da cozinha com tesouras e lápis e resmas de papel colorido. Desenho os moldes, e minha amiga corta: montes de gatos e também de peixes (são fáceis de desenhar), algumas maçãs, algumas melancias, uns poucos anjos alados, feitos do papel-alumínio que protege as barras de chocolate Hershey. Usamos alfinetes de segurança para prender essas criações à árvore; como toque final, salpicamos os galhos de algodão desfiado (colhido em agosto com esse propósito). Minha amiga, examinando o efeito, aperta as mãos, com os dedos entrelaçados. “Diga a verdade, Buddy. Não dá até vontade de comer?” Queenie tenta comer um anjo.
Depois de trançarmos e decorarmos guirlandas para todas as janelas, nosso próximo projeto é preparar os presentes para a família. Lenços tingidos para as mulheres; para os homens, um xarope caseiro de limão, alcaçuz e aspirina, a ser tomado “aos primeiros sintomas de resfriado ou após uma caçada”. Mas, quando chega a hora de prepararmos nossos próprios presentes, minha amiga e eu nos separamos para trabalhar em segredo. Eu gostaria de comprar para ela uma faca de cabo perolado, um rádio, meio quilo de cerejas cobertas de chocolate (certa vez, provamos algumas, e desde então ela jura: “Eu poderia viver só disso, Buddy, meu Deus, como eu poderia — e isso não é usar o nome Dele em vão”). Em vez disso, estou fazendo uma pipa. Ela gostaria de me dar uma bicicleta (já disse em milhares de ocasiões: “Se ao menos eu pudesse, Buddy. Já é ruim ter de viver sem alguma coisa que a gente quer; mas, arre, o que me tira do sério é não poder dar a alguém uma coisa que a gente quer que o outro tenha. Mas um dia desses eu consigo, Buddy. Vou arranjar uma bicicleta para você. Não me pergunte como. Roubando, quem sabe”). Em vez disso, tenho quase certeza de que ela está fazendo uma pipa para mim — como no ano passado e no retrasado: antes disso, trocamos estilingues. O que para mim está muito bom. Somos mestres da pipa, estudamos o vento feito marinheiros; minha amiga, mais experiente que eu, consegue levantar uma pipa quando a brisa mal remexe as nuvens.
Na véspera de Natal, juntamos cinco centavos e vamos ao açougue comprar o presente tradicional de Queenie, um osso de boi. O osso, embrulhado em papel de presente, é posto no alto da árvore, perto da estrela prateada. Queenie sabe que está bem ali. Senta ao pé da árvore, olhando para cima num êxtase famélico: quando chega a hora de dormir, ela se recusa a arredar dali. Sua agitação só tem igual na minha. Chuto os cobertores e viro o travesseiro como se esta fosse uma noite escaldante de verão. Em algum lugar, um galo canta, fora de hora, pois o sol ainda está do outro lado do mundo. “Buddy, está acordado?” É minha amiga, chamando do seu quarto, contíguo ao meu; num instante, está sentada na minha cama, segurando uma vela.
“Pois é, não consigo pregar o olho”, declara. “Minha cabeça fica pulando feito uma lebre. Buddy, você acha que a Sra. Roosevelt vai servir nosso bolo no jantar?” Nós nos aconchegamos na cama, e ela aperta minha mão com carinho. “Sua mão já foi tão pequenina. Não acho graça em ver você crescer. Quando você for grande, ainda vamos ser amigos?” Eu digo que sempre seremos. “Mas estou me sentindo tão mal, Buddy. Queria tanto dar uma bicicleta para você. Tentei vender o camafeu que papai me deu. Buddy”, ela hesita, “fiz outra pipa para você.” Então confesso que também fiz uma para ela; e rimos. A vela já está pequena demais para aguentar. Logo se apaga, dando vez à luz das estrelas, às estrelas que rodopiam na janela como uma cantoria visível que a madrugada silencia devagar, devagar.
Provavelmente cochilamos; mas o raiar do dia nos desperta como um banho de água fria: pulamos da cama, de olhos acesos, andando para cima e para baixo, esperando que os outros acordem. De caso pensado, minha amiga derruba uma chaleira no chão da cozinha. Eu sapateio diante das portas fechadas. Um a um, todos da casa emergem, com ar de que gostariam de nos matar; mas é Natal, não há jeito. Primeiro, um belo café-da-manhã: com tudo o que se possa imaginar, de panquecas a esquilo frito, de canjica a mel no favo. O que deixa todos de bom humor, com exceção da minha amiga e de mim. Francamente, estamos tão ansiosos pelos presentes que não comemos nem um bocado.
Bem, acabo me desapontando. Quem não se desapontaria? Um par de meias, uma camisa para a escola dominical, alguns lenços, um suéter de segunda mão e uma assinatura anual de uma revista religiosa para crianças, O Pastorzinho. É de ferver o sangue. É mesmo. Minha amiga tem mais sorte. Um saquinho de tangerinas japonesas é seu melhor presente. Mas ela fica orgulhosa mesmo é de um xale branco de lã, tricotado pela irmã casada. Porém, diz que prefere a pipa que eu fiz. E a pipa é bonita mesmo, mas não tão bonita quanto a que ela fez para mim, azul e pontilhada de estrelas de honra ao mérito verdes e douradas; além do mais, traz meu nome pintado em cima: “Buddy”.
“Buddy, está ventando.” Está ventando, e não há quem nos impeça de correr até um pasto atrás da casa, para onde Queenie disparou a fim de enterrar o osso (e onde, no próximo inverno, Queenie será enterrada também). Ali, mergulhando na relva viçosa que chega à cintura, empinamos as pipas, sentimos como se contorcem no fio tal qual peixes-voadores nadando no vento. Satisfeitos, aquecidos pelo sol, nos esparramamos na relva e descascamos tangerinas, observando as piruetas das pipas. Logo esqueço as meias e o suéter de segunda mão. Sinto-me feliz como se já tivéssemos ganhado o grande prêmio daquele concurso da marca de café. “Meu Deus, como sou boba”, minha amiga exclama, subitamente alerta, como uma mulher que lembra tarde demais dos biscoitos no forno. “Sabe o que eu sempre pensei?”, pergunta em tom de descoberta, rindo não para mim, mas para alguma coisa mais longe. “Sempre pensei que era preciso estar doente e quase à beira da morte para ver o Senhor. E eu achava que, quando Ele viesse, seria como olhar para uma janela de batista: bonito feito um vidro colorido contra a luz, tão brilhante que nem se nota que está escurecendo. E era um consolo pensar nesse brilho tirando toda sensação medonha. Mas agora aposto que não é desse jeito. Aposto que, bem no fim, a gente descobre que o Senhor já se mostrou. Que as coisas, do jeito que são”, a mão faz um círculo, num gesto que reúne as nuvens e as pipas e a relva e Queenie jogando terra em cima do osso, “do jeito que a gente sempre viu, já eram uma visão Dele. Por mim, eu poderia partir deste mundo com o dia de hoje nos olhos.”
É nosso último Natal juntos. A vida nos separa. Aqueles-que-sabem-o-que-é-melhor decidem que o lugar certo para mim é uma escola militar. E assim começa uma sucessão miserável de prisões a toque de clarim, penosos acampamentos de verão sob o jugo da alvorada. Tenho um novo lar também. Mas esse não conta. Meu lar é onde minha amiga está, e para lá eu jamais vou. E lá ela fica, circulando pela cozinha. Só ela e Queenie. Depois, só ela. (“Querido Buddy”, ela escreve, com a letra rebelde e difícil de ler, “ontem o cavalo do Jim Macy deu um coice feio na Queenie. Graças a Deus, ela não sofreu muito. Então a enrolei num lençol bonito e a levei na carreta até o pasto do Simpson, onde ela pode ficar com todos os ossinhos dela...”)
Por mais alguns novembros minha amiga continua a assar os bolos de frutas, sozinha; já não são tantos bolos, só alguns; e é claro que ela sempre me manda “o melhor da fornada”. Além disso, em toda carta enfia uma moeda de dez centavos embrulhada em papel higiênico: “Vá ao cinema e me conte a história”. Mas aos poucos ela começa a me confundir nas cartas com seu outro amigo, o Buddy morto na década de 1880; cada vez mais, o dia 13 não é o único que ela passa na cama; chega certa manhã em novembro, certa manhã de um começo de inverno sem folhas nem pássaros, em que ela não consegue mais levantar para dizer: “Ah, é tempo de bolo de frutas!”. E eu sei muito bem quando é que isso acontece. Uma mensagem a respeito só confirma a notícia que alguma veia secreta já recebera, cortando uma parte insubstituível de mim mesmo, soltando-a feito uma pipa de fio partido. É por isso que, caminhando pelo terreno da escola nesta manhã de dezembro, vasculho o céu. Como se esperasse ver, tal qual corações, um par de pipas voando direto para o paraíso.
[1956]

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