O que você fala nem sempre (quase nunca) é o que o
outro entende
REVISTA BULA
Desde cedo, descobri — da forma mais
curiosa possível — que não vemos as cores da mesma forma. Até hoje ainda acho
muita graça quando discuto com minha querida mãe sobre cores que transitam
entre laranja, rosa e vermelho. Minha paleta é imensa, vejo rosa-bebê, pink,
fúcsia, vinho, ocre etc. As nuances dela também são várias, mas nunca batem com
as minhas quando estamos nesses tons. Se vejo pêssego, ela vê rosa-chá, se vejo
amadeirado, ela vê vinho claro. Geralmente, terminamos o assunto rindo (e com
certa pena uma da outra), já que reciprocamente nos consideramos daltônicas.
Jamais saberemos qual das duas nasceu com defeito de fábrica.
A bem da verdade, quando olhamos para
uma laranja, sabemos que ela é laranja porque aprendemos assim. No entanto,
como ainda não podemos enxergar o mundo com os olhos alheios, não dá para saber
se a pessoa ao lado está realmente vendo a cor do mesmo jeito que nós, embora a
batizemos com o mesmo nome. Quem garante que o cara do lado não chame de verde
toda cor que, para você, é inevitavelmente roxa?
Se não conseguimos nos entender diante
de algo tão (em tese) objetivo como as cores, imagine perante situações
conotativas, que exijam compreensão e interpretação. Para total desespero,
mesmo com todo o esforço dos diversos idiomas e suas regras objetivas,
dificilmente conseguiremos fazer-nos entendidos exatamente como queremos. Certo
é que, entre o que sai da boca de um e o que o cérebro do outro entende, existe
enorme abismo, um verdadeiro limbo interpretativo.
Há vários anos, um dos vestibulares do
Centro-Oeste lançou questões de interpretação sobre determinado texto do
memorável escritor Bernardo Élis. Antes de o gabarito oficial sair, o próprio
autor foi convidado a comentar a prova numa escola e, juntamente com os
professores, fez um gabarito preliminar. Qual não foi a surpresa de todos
quando o gabarito oficial saiu e as respostas não batiam com as do próprio
escritor! Indagada, a coordenadora da banca limitou-se a responder (com certa
propriedade, é verdade) que o eu-lírico fala mais alto e, portanto, o próprio
autor pode, muitas vezes, não compreender o que seu eu-poético quis dizer. Em
tempo: o gabarito não foi alterado. Bernardo Élis que aprendesse a compreender
melhor seu eu-lírico.
Levei anos de terapia para introjetar
que sou responsável apenas por parte do processo de comunicação. Ajeito-me da
melhor forma possível para expressar com objetividade minhas mensagens, mas
frequentemente o negócio embanana. Às vezes, explicações mais aprofundadas são
suficientes para desfazer o boró, mas certamente muita coisa é engolida de
maneira equivocada. Sempre que leio alguns comentários de leitores nas colunas
desta revista, pergunto-me se eu mesma não deveria aprender a me interpretar
melhor. Vai que o eu-lírico quis dizer uma coisa que eu não soube captar, mas
que o leitor pegou direitinho…
O cenário complica ainda mais quando
se consideram outras variantes: linguagem corporal, segundas intenções,
sentimentalidades, meias-palavras, carência vocabular (por desconhecimento do
falante ou limitação da língua)… A verdade é que pouco do que se expressa
costuma ser objetivo e literal.
Enfim, antes vivêssemos num mundo em
que a comunicação fosse despicienda. Antes passar uma mensagem fosse tão
objetivo quanto, sei lá, beber um copo d´água. Já nem sei mais se beber um copo
d´água é assim tão objetivo. Depende de quem bebe. Depende do contexto.
Depende.
Mas quer saber? Que saco seria se o
mundo fosse cheio de verdades universais.
http://www.revistabula.com/7496-o-que-voce-fala-nem-sempre-quase-nunca-e-o-que-o-outro-entende/
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