O legado de Euclides da Cunha
Walnice Nogueira Galvão
Há cem anos, o Brasil perdia um dos maiores nomes de sua literatura
Quando nos abalançamos a avaliar o legado de
Euclides da Cunha, logo nos defrontam alguns tropeços, derivados da amplitude
de seus interesses e da impermanência de suas atividades. Espírito irrequieto e
índole aventuresca, embora nem sempre lembrados quando se trata desse autor,
são todavia traços marcantes na conformação não só de seu temperamento como de
sua obra.
Vivendo e morrendo durante a vigência da belle
époque, um rápido relance de sua época pode ajudar a entendê-lo. Esse
período, que recobre a virada de século até a guerra de 1914, foi assinalado
entre nós por uma intensa galomania. Tudo aqui seguia então o modelo francês. A
reforma Pereira Passos, que urbanizou e modernizou o Rio de Janeiro, capital do
país, foi executada conforme o paradigma da reforma Haussmann, de Paris. Largas
avenidas de traçado retilíneo, interrompidas regularmente por uma praça de que
irradiavam, com palacetes formando o casario de frente, forçaram a semelhança.
Publicavam-se matérias em francês nos principais jornais e revistas. Grã-finos,
artistas e intelectuais buscavam Paris com frequência, como era o caso de Olavo
Bilac, entre tantos outros. Vinham de Paris as modas do vestuário, os hábitos
da elegância, os costumes da sociabilidade, mas também maneiras de pensar, os padrões
estéticos e as novidades da ciência.
O anseio de conhecer o Brasil
De toda essa francesice, Euclides iria divergir,
juntamente com uns poucos contemporâneos. Fizera seus estudos na Escola
Militar, uma das mais avançadas instituições de ensino que já houve no país.
Muitos ministros e parlamentares continuavam a dar aulas ali enquanto atendiam
a seus mandatos, o que evidencia o prestígio da escola. Ali também se
originaram algumas mentes privilegiadas, como Benjamin Constant, que seria,
imediatamente após a proclamação da República, o primeiro ministro da Guerra e,
em seguida, da Educação, autor da reforma de ensino republicana, seu mestre
desde o colegial. Entre os colegas, caberia lembrar Cândido Mariano Rondon,
criador do indigenismo e do Serviço de Proteção aos Índios, que comandou a
instalação das linhas de telégrafo que uniram o sul ao norte do país, através
dos sertões. O que havia de comum neles todos era o projeto de conhecer e dar a
conhecer o Brasil, o engajamento e o senso de missão. Assim, voltaram as costas
para a Europa e buscaram decididamente a hinterlância.
Em mais de uma ocasião Euclides, que já em sua
poesia juvenil manifestava ansiar pelos sertões, embrenhou-se pelo país
adentro. Deixaria a farda para ser engenheiro de obras públicas do estado de
São Paulo, profissão que exerceu enquanto residia em cidadezinhas do interior.
Seu mais importante livro resultaria de uma incursão ao sertão da Bahia, quando
foi fazer a cobertura da guerra de Canudos. E mesmo mais tarde, já famoso e
membro eleito da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ainda viajou para a Amazônia, enfrentando as agruras de uma
expedição que durou ao todo um ano e meio, após pleitear e obter junto ao barão
do Rio Branco o cargo de presidente da comissão de reconhecimento do Alto
Purus.
Euclides estava permanentemente descontente com sua
situação atual e arrenegava dela, recomeçando o processo quando conseguia
trocá-la por outra, para logo reiniciar as reclamações. É o que se pode
observar nas tentativas malsucedidas de fazer carreira política ou de
transferir-se para o magistério, algo que conseguiria apenas poucos meses antes
de morrer. Nota-se que o fio condutor de toda a sua obra, mais voltada para
dentro do país do que para fora, tratado com constância, é o tema da viagem, em
suas várias metamorfoses.
Pelo alcance, mas também pelo número de páginas que
lhe deu mais espaço para desenvolver seus interesses, Os sertões é a
obra em que seu talento culmina. Entretanto, não devem ficar na sombra os ensaios
e artigos que escreveu ao longo da vida, intervindo constantemente no debate
público: alguns são de fato notáveis. Recolheu-os em Contrastes e confrontos
e À margem da história. Nos dois volumes destacam-se os ensaios
amazônicos, resultantes de sua excursão ao Alto Purus, em que produziu algumas
das mais válidas reflexões que já se fizeram sobre a região, sua natureza e
seus habitantes.
Diário de uma expedição
Foi integrado à última das quatro expedições da
campanha de Canudos, na qualidade simultânea de enviado especial do jornal O
Estado (então A Província) de S. Paulo e adido ao
estado-maior do ministro da Guerra, que Euclides se tornaria testemunha ocular
da campanha, enviando para o jornal a série de reportagens que levaria o título
de “Diário de uma expedição”.
O arraial calou-se, sem se render, a 5 de outubro
de 1897, após ser incinerado mediante o lançamento de querosene e bombas de
dinamite. Os últimos resistentes, tombados numa cova que servia de trincheira
no largo das igrejas, não eram mais que quatro, dos quais dois homens, um velho
e um menino. Sempre rememorado, esse final inglório tornou-se representativo
daquela que foi uma guerra de extermínio contra uma população indefesa. Da
experiência, resultaria seu livro mais reputado. Mas antes Euclides dedica-se a
acumular uma notável gama de saberes para escrever Os sertões,
consagrado ao resgate da memória daqueles que pereceram defendendo Canudos.
Sua indagação fundamental é esta: por que existiria
esse tipo de fenômeno num país que acabara de dar dois gigantescos passos na
direção do progresso, emancipando os escravos e derrubando a monarquia? Na
ânsia de encontrar respostas, Euclides procederia a estudos sobre “A terra”,
que aparecem na primeira parte, interessado que ficou pela formação geológica
da região, detendo-se na flora e na fauna, nos determinantes da seca endêmica
naquelas paragens, na aridez de deserto que ali reina. Na segunda parte, “O
homem”, o autor estuda as correntes de povoamento e as teorias da miscigenação
para compreender a genealogia do sertanejo e analisar o conjunto de fatores que
deu origem a um líder extraordinário como Antonio Conselheiro. O restante do
livro é dedicado à luta, com base no que viu e anotou em suas cadernetas de
campo, nas reportagens que fez como correspondente, mas também em materiais
como o noticiário de outros jornais, as ordens do dia dos militares, os
relatórios de governo.
Torturado, emocional, quase sempre grandiloquente,
não é de leitura amena e reboa como o discurso de um tribuno. A lição principal
que Euclides nos lega no que concerne a uma guerra fratricida e desnecessária é
a admiração pelo esforço desenvolvido por populações carentes de tudo para
criar novas formas de vida em comum. De um modo ou de outro, engendraram uma
estrutura alternativa de poder que as subtraía ao mando de fazendeiros, padres
e delegados de polícia – que encarnavam as autoridades máximas no sertão,
representando a propriedade, a Igreja e as forças da repressão.
Com a guerra de Canudos, completa-se o processo de
consolidação do regime republicano. Graças ao sacrifício dos conselheiristas,
exorcizou-se o espectro de uma eventual restauração monárquica. O papel que
esse livro teve na história e na cultura brasileira foi fundamental. A opinião
do país estava abalada por ter incorrido num equívoco, escancarando sua sanha
sanguinária contra um punhado de pobres, que não ameaçavam ninguém. A
manipulação a que fora sujeita, por parte das autoridades e dos jornais, ficou
evidente, bem como o triste papel do Exército. As manifestações de desagravo
aos canudenses espalharam-se pelo país e pelos setores sociais, mesmo aqueles
inicialmente mais vociferantes.
De todo esse movimento da consciência nacional
fez-se a súmula em Os sertões, que funcionou como um vasto mea culpa.
Seu êxito imediato e duradouro mostra como os leitores se identificaram com
a busca angustiosa de respostas e com o resgate do heroísmo dos canudenses. O
livro, além da mais alta literatura, erigiu-se em monumento consagrado à
memória de Canudos. Ainda hoje, constitui a peça maior do legado do escritor,
na beleza de sua escrita, nos meandros de seus raciocínios e na paixão que
expressa.
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita de Teoria Literária e Literatura Comparada da
USP. É autora, entre outros, de Correspondência
de Euclides da Cunha (Edusp, 1997).
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