domingo, 4 de setembro de 2016

O legado de Euclides da Cunha, Walnice Nogueira Galvão



O legado de Euclides da Cunha
Walnice Nogueira Galvão



Há cem anos, o Brasil perdia um dos maiores nomes de sua literatura

Quando nos abalançamos a avaliar o legado de Euclides da Cunha, logo nos defrontam alguns tropeços, derivados da amplitude de seus interesses e da impermanência de suas atividades. Espírito irrequieto e índole aventuresca, embora nem sempre lembrados quando se trata desse autor, são todavia traços marcantes na conformação não só de seu temperamento como de sua obra.

Vivendo e morrendo durante a vigência da belle époque, um rápido relance de sua época pode ajudar a entendê-lo. Esse período, que recobre a virada de século até a guerra de 1914, foi assinalado entre nós por uma intensa galomania. Tudo aqui seguia então o modelo francês. A reforma Pereira Passos, que urbanizou e modernizou o Rio de Janeiro, capital do país, foi executada conforme o paradigma da reforma Haussmann, de Paris. Largas avenidas de traçado retilíneo, interrompidas regularmente por uma praça de que irradiavam, com palacetes formando o casario de frente, forçaram a semelhança. Publicavam-se matérias em francês nos principais jornais e revistas. Grã-finos, artistas e intelectuais buscavam Paris com frequência, como era o caso de Olavo Bilac, entre tantos outros. Vinham de Paris as modas do vestuário, os hábitos da elegância, os costumes da sociabilidade, mas também maneiras de pensar, os padrões estéticos e as novidades da ciência.

O anseio de conhecer o Brasil
De toda essa francesice, Euclides iria divergir, juntamente com uns poucos contemporâneos. Fizera seus estudos na Escola Militar, uma das mais avançadas instituições de ensino que já houve no país. Muitos ministros e parlamentares continuavam a dar aulas ali enquanto atendiam a seus mandatos, o que evidencia o prestígio da escola. Ali também se originaram algumas mentes privilegiadas, como Benjamin Constant, que seria, imediatamente após a proclamação da República, o primeiro ministro da Guerra e, em seguida, da Educação, autor da reforma de ensino republicana, seu mestre desde o colegial. Entre os colegas, caberia lembrar Cândido Mariano Rondon, criador do indigenismo e do Serviço de Proteção aos Índios, que comandou a instalação das linhas de telégrafo que uniram o sul ao norte do país, através dos sertões. O que havia de comum neles todos era o projeto de conhecer e dar a conhecer o Brasil, o engajamento e o senso de missão. Assim, voltaram as costas para a Europa e buscaram decididamente a hinterlância.

Em mais de uma ocasião Euclides, que já em sua poesia juvenil manifestava ansiar pelos sertões, embrenhou-se pelo país adentro. Deixaria a farda para ser engenheiro de obras públicas do estado de São Paulo, profissão que exerceu enquanto residia em cidadezinhas do interior. Seu mais importante livro resultaria de uma incursão ao sertão da Bahia, quando foi fazer a cobertura da guerra de Canudos. E mesmo mais tarde, já famoso e membro eleito da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ainda viajou para a Amazônia, enfrentando as agruras de uma expedição que durou ao todo um ano e meio, após pleitear e obter junto ao barão do Rio Branco o cargo de presidente da comissão de reconhecimento do Alto Purus.

Euclides estava permanentemente descontente com sua situação atual e arrenegava dela, recomeçando o processo quando conseguia trocá-la por outra, para logo reiniciar as reclamações. É o que se pode observar nas tentativas malsucedidas de fazer carreira política ou de transferir-se para o magistério, algo que conseguiria apenas poucos meses antes de morrer. Nota-se que o fio condutor de toda a sua obra, mais voltada para dentro do país do que para fora, tratado com constância, é o tema da viagem, em suas várias metamorfoses.

Pelo alcance, mas também pelo número de páginas que lhe deu mais espaço para desenvolver seus interesses, Os sertões é a obra em que seu talento culmina. Entretanto, não devem ficar na sombra os ensaios e artigos que escreveu ao longo da vida, intervindo constantemente no debate público: alguns são de fato notáveis. Recolheu-os em Contrastes e confrontos e À margem da história. Nos dois volumes destacam-se os ensaios amazônicos, resultantes de sua excursão ao Alto Purus, em que produziu algumas das mais válidas reflexões que já se fizeram sobre a região, sua natureza e seus habitantes.

Diário de uma expedição
Foi integrado à última das quatro expedições da campanha de Canudos, na qualidade simultânea de enviado especial do jornal O Estado (então A Província) de S. Paulo e adido ao estado-maior do ministro da Guerra, que Euclides se tornaria testemunha ocular da campanha, enviando para o jornal a série de reportagens que levaria o título de “Diário de uma expedição”.

O arraial calou-se, sem se render, a 5 de outubro de 1897, após ser incinerado mediante o lançamento de querosene e bombas de dinamite. Os últimos resistentes, tombados numa cova que servia de trincheira no largo das igrejas, não eram mais que quatro, dos quais dois homens, um velho e um menino. Sempre rememorado, esse final inglório tornou-se representativo daquela que foi uma guerra de extermínio contra uma população indefesa. Da experiência, resultaria seu livro mais reputado. Mas antes Euclides dedica-se a acumular uma notável gama de saberes para escrever Os sertões, consagrado ao resgate da memória daqueles que pereceram defendendo Canudos.

Sua indagação fundamental é esta: por que existiria esse tipo de fenômeno num país que acabara de dar dois gigantescos passos na direção do progresso, emancipando os escravos e derrubando a monarquia? Na ânsia de encontrar respostas, Euclides procederia a estudos sobre “A terra”, que aparecem na primeira parte, interessado que ficou pela formação geológica da região, detendo-se na flora e na fauna, nos determinantes da seca endêmica naquelas paragens, na aridez de deserto que ali reina. Na segunda parte, “O homem”, o autor estuda as correntes de povoamento e as teorias da miscigenação para compreender a genealogia do sertanejo e analisar o conjunto de fatores que deu origem a um líder extraordinário como Antonio Conselheiro. O restante do livro é dedicado à luta, com base no que viu e anotou em suas cadernetas de campo, nas reportagens que fez como correspondente, mas também em materiais como o noticiário de outros jornais, as ordens do dia dos militares, os relatórios de governo.

Torturado, emocional, quase sempre grandiloquente, não é de leitura amena e reboa como o discurso de um tribuno. A lição principal que Euclides nos lega no que concerne a uma guerra fratricida e desnecessária é a admiração pelo esforço desenvolvido por populações carentes de tudo para criar novas formas de vida em comum. De um modo ou de outro, engendraram uma estrutura alternativa de poder que as subtraía ao mando de fazendeiros, padres e delegados de polícia – que encarnavam as autoridades máximas no sertão, representando a propriedade, a Igreja e as forças da repressão.

Com a guerra de Canudos, completa-se o processo de consolidação do regime republicano. Graças ao sacrifício dos conselheiristas, exorcizou-se o espectro de uma eventual restauração monárquica. O papel que esse livro teve na história e na cultura brasileira foi fundamental. A opinião do país estava abalada por ter incorrido num equívoco, escancarando sua sanha sanguinária contra um punhado de pobres, que não ameaçavam ninguém. A manipulação a que fora sujeita, por parte das autoridades e dos jornais, ficou evidente, bem como o triste papel do Exército. As manifestações de desagravo aos canudenses espalharam-se pelo país e pelos setores sociais, mesmo aqueles inicialmente mais vociferantes.

De todo esse movimento da consciência nacional fez-se a súmula em Os sertões, que funcionou como um vasto mea culpa. Seu êxito imediato e duradouro mostra como os leitores se identificaram com a busca angustiosa de respostas e com o resgate do heroísmo dos canudenses. O livro, além da mais alta literatura, erigiu-se em monumento consagrado à memória de Canudos. Ainda hoje, constitui a peça maior do legado do escritor, na beleza de sua escrita, nos meandros de seus raciocínios e na paixão que expressa.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. É autora, entre outros, de Correspondência de Euclides da Cunha (Edusp, 1997).

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