quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Considerações acerca da Carta Ao Pai, Edevaldo Leal Costav



Considerações acerca da Carta Ao Pai
Edevaldo Leal Costav


CARTA PARA KAFKA
Edevaldo Leal Costav

Estimado escritor,

Sei que, a esta hora, estás envolvido em lençóis brancos e – presumo – livre de insetos. Sei, também, que não vais me responder ao atrevimento. Já basta o incômodo que te causaram hermeneutas que tentaram interpretar teu legado literário e não conseguiram definir com exatidão aquele artrópode. Para a maioria, uma barata. Começo, então, com esta pergunta: pode a dor residir apenas no grito de quem sofre? Nem sei exatamente por que faço essa pergunta idiota, talvez porque , relendo tua Carta ao Pai, redescubro que a dor agitou toda tua existência e formou maresias à margem desse rio imenso, largo, agitado e profundo que é a tua literatura. Não queria tocar na ferida, mas não há como fugir desse rumo, de outro modo a conversa ficaria sem sentido. É, me perdoa, para teu pai que a conversa terá de convergir, aquele de quem te ocupaste em toda a tua obra (“minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”), ele que fez de ti sobra de amargura ( “entre nós não houve propriamente uma luta, fui logo liquidado; o que sobrou foi fuga, amargura, luto, luta interior”). Sucede que, sendo dele que se forma a musculatura dos teus escritos, ainda que seja impossível compreender a insensibilidade com que te tratava, penso que o poder opressor de que te queixas foi a porta por onde entrou a liberdade criadora capaz de legar ao mundo obras como Metamorfose, Veredicto e O Processo, onde, certamente, reinventas a angústia universal do homem.

Teu pai te fez passar por todas as indignidades. Te tornaste medroso, acanhado, desatento, melancólico, culpado, sem vontade própria, ”inacessível a qualquer encorajamento”. Embora nunca tenha te espancado( como reconheces), eras humilhado, vivias ”sob a pressão geral do medo, da fraqueza, do autodesprezo”. Experimentaste o “sussurro da ira”, a censura a qualquer manifestação, a palavra proibida sob ameaça. A contestação impedida. A obediência imposta. O deboche desenhado no canto da boca. Como daquela vez, igual a tantas, quando , ao ver-te feliz, antes de zombar de ti (“já vi coisa mais interessante”), sacudiu negativamente a cabeça e tamborilou os dedos sobre a mesa. Teu pai não sabia, mas estava criando as condições para que a tua literatura fosse iluminada com o nojo e a repulsa ao poder autoritário, um manifesto contra todas as formas de opressão, inclusive a paterna.


O sentimento de nulidade e de medo que sentias diante do velho Hermann é o mesmo que sentem empregados diante de chefetes estúpidos e cidadãos diante de governos tiranos. Tua Carta ao Pai (“testemunho fiel da verdade”) assusta e comove, revolta e liberta. Não pode ser lida sem chocar, sem deixar no leitor o estilhaço do espanto, a consciência de quão funesto é o poder arbitrário, não só o paterno. Viver em uma sociedade onde se proíbe o uso da palavra (“ falar de maneira aberta contigo eu jamais falei”), onde a liberdade de ir e vir é negada(“eu sempre me encafufei de ti em meu quarto”) só é comparável a viver numa colônia penal. A dor não estava no grito, que te era negado. Estava na espetada na carne a cada proibição imposta. Mas a vida precisava continuar, ainda que sob a casca de um inseto isolado num quarto. Ontem e hoje, a metáfora se repete na falta de escrúpulos da sociedade que esmaga quem ousa gritar por não suportar o peso de normas ilegítimas, às vezes ilegais. Na sociedade doente em que vivemos, raros são os insetos que conseguem sobreviver à dor da maçã jogada nas costas.

Hoje, ao reler tua carta, eu lembrei de ti e fiquei pensando : não está na hora , aí onde te encontras, de dares um beijo no velho Hermann? Afinal, sem ele, os séculos clamariam menos contra a solidão dos rejeitados e a dor dos excluídos.

Cordialmente, teu leitor e admirador,

Edevaldo Leal Costav.
Setembro,2014

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