sábado, 2 de março de 2013

TRUMAN CAPOTE


TRUMAN CAPOTE

Sexta-feira, Outubro 17, 2008


Entre os autores que contribuíram decisivamente para que a ficção americana atingisse o zénite, está Truman Capote (1924-1984), desde sempre associado à imagem de perversidade que a contracapa de Outras Vozes, Outros Quartos (1948) ilustra de modo quase obsceno. Não tendo escrito muito, acertou quase sempre. Pode-se dizer que a parcimónia da obra é directamente proporcional ao seu brilho.

Com inteira justiça, na introdução que escreveu para The Complete Stories of Truman Capote (2004), texto que esta edição inclui, Reynolds Price afirma: «No seu naufrágio final, seria muito provável que Capote encarasse esta magra colecção de contos como a menos importante das suas realizações; porém, na arena dos sentimentos humanos vertidos em literatura, eles representam a sua mais impressionante vitória
[...] no campo de batalha da prosa de língua inglesa». Agora, os Contos Completos chegaram à edição portuguesa. É altura de conferir.

Ordenados cronologicamente entre As paredes são frias (1943) e Um Natal (1982), os vinte contos de Capote aqui reunidos traçam o quadro da uma vida. A infância sulista, experiência que em parte explicará a reincidência temática e a influência que sobre ele exerceram, nos primeiros tempos, autoras como Eudora Welty e Carson McCullers (a propósito, leiam-se Garrafão de prata e A minha versão das coisas, ambos de 1945); o sucesso precoce, à boleia de A Sangue Frio, livro-choque que subverteu o paradigma da ficção americana dos anos 1960; os anos de glória, quando tratava por tu as celebridades e os grandes do mundo; e, por fim, o fragoroso declínio, num lodaçal de mexericos, álcool e drogas.

Como é sabido, a história acabou mal. Capote teve a insensatez de pré-publicar em revistas literárias alguns capítulos do romance inacabado Súplicas Atendidas (1987, póstumo; e essa decisão arruinou-lhe a carreira logo em 1975, quando Mojave, o primeiro desses capítulos (não incluído na versão final do livro), apareceu em letra de forma na Esquire. A alta-sociedade fechou-lhe as portas e ele praticamente deixou de escrever.

Mojave faz parte deste conjunto. Para o leitor comum, a história da mulher que fez do psicanalista seu gigolo privado, não tem nada de extraordinário. Ela nunca é citada pelo nome, o psicanalista é um crápula da pior espécie, e o marido discute com ela os seus (dele) casos amorosos. Referências concretas ao La Grenouille, um restaurante muito exclusivo de Nova Iorque, onde um psicanalista como Ezra Bentsen nunca seria admitido por si mesmo, sinalizam a intriga. Capote fala com desembaraço do meio que melhor conheceu, e, a avaliar pelas reacções de 1975, tocou nas feridas de gente poderosa. Mas, como em qualquer roman à clef, a onda de choque fica contida no círculo dos iniciados. Lido à distância de trinta anos, sem prejuízo da proverbial clareza de dicção do autor, o texto perde no confronto com outros. Os mirabolantes episódios ocorridos no deserto Mojave (esta parte da narrativa é feita pelo marido em retrospecto) “colam” mal, e de certo modo contradizem, em termos formais e de conteúdo, o seu longo intróito.
   Mas nos dezenove contos que sobram são múltiplos os motivos de interesse. Logo no primeiro, As paredes são frias, Capote calibra a perspicácia do retrato social que faria a fortuna da obra. Anos mais tarde, na plena posse de todos os recursos estilísticos, A pechincha (1950) dará notícia do escritor capaz de mil harmónicas no quadro estrito de uma tão severa economia narrativa: «Estava frio dentro do casaco, e Mrs. Chase estremeceu, e, ao mesmo tempo, um afogueamento aqueceu-lhe o rosto, pois só então se deu conta de que Alice Severn estava a espreitar por cima do seu ombro, e na sua expressão havia, pela primeira vez desde que entrara naquela casa, uma expectativa tensa, humilhante.» Nada que comovesse Mrs. Chase. Em matéria de compaixão, «antes de a conceder a alguém, tomava a precaução de lhe atar um fio, para que, em caso de necessidade, pudesse puxá-la de volta.» Não sei o que ensinam nas aulas de escrita criativa, mas sei que A pechincha devia ser obrigatório.

Se quisermos isolar um que seja especialmente revelador do psicologismo de Capote, a escolha certa será Fechar uma última porta (1947). Por interposta personagem, o narrador diz de si próprio: «A tua maldade é compulsiva, extremamente compulsiva, e, no fundo, tu acabas por ser uma vítima dessa compulsão». E antes que a história termine, confessa: «Era como se estivesse a vingar-me de toda a gente que me fez mal ao longo da minha vida». Não há volta a dar: Capote não escapa aos atribulados acidentes biográficos. É verdade que em 1947 eles eram de natureza diferente do que seriam vinte anos mais tarde, mas também é preciso não esquecer que, aos 23 anos, sem a vertigem do Gotha, que então apenas entrevia, o lastro da infância e adolescência (pai ausente, mãe alcoólica, nomadismo familiar, padrasto cubano, de quem herdou o Capote, estudos irregulares, estigma homossexual, suicídio da mãe, etc.) era para ele uma segunda pele. Fechar uma última porta ganhou em 1948 o O. Henry Award, prestigioso prémio que todos os anos distingue o melhor conto publicado na imprensa americana e canadense. A extensa lista de laureados inclui Carver, Faulkner, Updike, Byatt, O’Connor, Parker, etc. Tudo indica que o plot reproduza momentos da sua passagem (como servente), no início dos anos 1940, pela revista New Yorker.

É extremamente gratificante ler estes contos na tradução escorreita de José Vieira de Lima. Nem sempre se pode dizer o mesmo.
O triunfo da língua, in
Ípsilon, 17-10-2008, p. 44. Cinco estrelas.

 

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