quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A MORTE DA BEZERRA, Elias Ribeiro Pinto

A MORTE DA BEZERRA, Elias Ribeiro Pinto


COLUNA DESTA SEXTA (19/5/17), no Jornal Diário do Pará
A impressão de que sobrevivemos se acentua quando se chega aos 60, aos 70, aos 80 – daí em diante, como anunciaria o profeta de boteco (ou o Conselheiro Acácio), o fim está próximo

Quando a curva dos 60 anos se aproxima vertiginosamente ao fim da reta (e para muitos é hora de aliviar a velocidade e tirar o seu da reta), a sensação é de que sobrevivemos. Claro, esta impressão se acentua quando se chega propriamente aos 60, aos 70, aos 80 – daí em diante, como anunciaria o profeta de boteco (ou o Conselheiro Acácio), o fim está próximo.
Eu me sinto um sobrevivente. Muitos amigos tombaram pelo caminho. Sou da geração que foi atingida e emparedada, no viço da juventude, pela Aids, quando tínhamos 20 e poucos anos (ou 25 anos de sonho e de sangue). Às primeiras notícias desencontradas sobre o irromper misterioso de um mal insidiosamente letal, a “peste” parecia uma ameaça distante, remota, até que ela mostrasse sua cara entre pessoas que nos eram familiares, amigos que circulavam na roda. A morte se fez presente num momento em que ainda não era para entrar em cena, ao menos com tanta frequência numa faixa de idade que sequer havia cruzado os umbrais dos 30 anos.
Houve os suicidas (sempre os há), os que se foram em acidentes. E agora, de uns anos para cá, são os amigos de uma geração acima, dez anos mais velhos (ou nem isso), que nos vão deixando, ainda precocemente, vítimas, não raro, da displicência (principalmente amigos homens) com que cuidamos da saúde.
Até que somos atingidos pela dor da perda de um ente amado, pais, irmãos, e a morte se nos impõe como uma realidade inevitável, presente, e que já não é mais possível ignorar. E quando uma grave enfermidade nos é diagnosticada, aí somos confrontados, enfim, ao maior dos enigmas e do qual não podemos mais escapar, ignorar. A luta agora é nossa, pessoal, intransferível.
É gradativa (com o passar dos anos, das décadas) a infiltração da morte, os reclames de sua presença, seu enrodilhamento de serpente a armar o bote. Costumo brincar com amigos dispersos, ao reencontrá-los: ainda dá para tomar umas? Em geral, nosso encontro agora é no entorno das gôndolas dos supermercados, entre cebolas, abacates e sementes de chia & linhaça.
Houve tempo, não faz muito, em que a morte não só era um acontecimento distante como ainda se revestia de certa solenidade. Hoje, ela nos é escancarada (e até eviscerada) todos os dias e repetidas vezes, à náusea, nos mais variados meios de comunicação, nas telas de nossos celulares, computadores, no Youtube. A morbidez aliou-se à tecnologia.
Por mais chocante que sejam, estas cenas expõem a morte do “outro”, se dão longe das fronteiras da nossa existência. Cercamo-nos de toda sorte de expressões “mágicas” para afastar a “indesejada das gentes”, como Manuel Bandeira se referia à morte. Como a expressão, por exemplo: “Sobre morte? Ih, é bom nem falar”. Mas a morte (incluindo a nossa) é a única certeza que temos da vida. E cada dia que passa esta certeza cresce, na forma de uma dor que não havia, de uns cansaços que não nos acometiam, de uns achaques de que não sofríamos. Até que fechamos as janelas, indiferentes ao dia lá fora delas.
A morte é um dos mais persistentes temas da literatura – ao lado do amor, da paixão. Amor e morte. Uma das mais inquietantes descrições do sofrimento diante do horror da morte (já desde o título) se apresenta na novela “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói. O nosso Haroldo Maranhão incluiu o próprio nome em outra novela, “A Morte de Haroldo Maranhão”. Outro de seus textos também corteja a Indesejada, com humor fúnebre: “Miguel Miguel”.
No Brasil, um dos poetas mais obcecados pela presença da morte é João Cabral de Melo Neto. No livro “Agrestes” há uma seção exatamente intitulada “A Indesejada das Gentes”, trazendo (na minha opinião) a mais notável (se posso dizer assim) série (no Brasil) de poemas sobre a morte, tendo em “Como a morte se infiltra” seu ponto máximo.
Aliás, neste mesmo livro (mas fora da seção referida), há o poema “Contam de Clarice Lispector”. Nele, temos a autora de “A Paixão Segundo G.H.” conversando, com amigos, “dez mil anedotas de morte/ e do que tem de sério e circo”. Nisso, chegam outros conhecidos e a conversa se desvia para o resultado de uma partida de futebol. Quando o assunto esportivo esmorece, ouve-se a voz de Clarice: “Vamos voltar a falar na morte?”. Vamos? A não ser que, fugindo (outra vez) do assunto, vocês queiram falar na morte da bezerra.
P.S.: Nem Shakespeare daria conta do Brasil. Hamlet perde.


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