Foucault, leitor assíduo da
tragédia
Há 30 anos, em 25 de junho de 1984, faleceu Michel
Foucault. CULT relembra a obra e o pensamento do autor no dossiê da edição 191
Márcio Alves da Fonseca
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da Fonseca, Michel
Foucault, O cuidado de
si, Vigiar e
Punir
A recepção do pensamento de Michel Foucault, trinta anos após a morte do
filósofo, continua bem viva. Ela não se encontra consolidada e está longe de
ser concluída, pois do mesmo modo que seu pensamento se apresentava como um “pensamento
em construção”, também seus veículos – livros, cursos, entrevistas,
conferências, emissões radiofônicas, manuscritos – não constituem, até hoje, um
edifício acabado. De forma análoga ao pensamento que se pretendia inquieto e em
constante movimento relativamente a si próprio, pode-se falar também em uma
“obra” que não cessa de se estabelecer e, por isso mesmo, modificar-se. A
“biblioteca Foucault” ainda não se encontra inteiramente catalogada,
preservando, de certo modo, a intenção de seu “autor” em constituir um
pensamento destinado ao deslocamento.
Desde os dois últimos volumes da História da sexualidade,
publicados no mesmo ano da morte precoce de Foucault, são pelo menos três vagas
sucessivas de trabalhos que fazem agitar a superfície aparentemente tranquila –
porque é aparentemente dominada por seus leitores – das publicações conhecidas
até aquele momento. A primeira delas foi o conjunto de Dits et écrits.
Publicados em 1994, os quatro volumes deram a conhecer uma massa de trabalhos
até então inéditos, composta por artigos, conferências, prefácios, entrevistas,
debates realizados por Foucault durante toda a sua vida. A edição francesa
destas centenas de ditos e escritos foi feliz em não classificá-los em
temáticas específicas. Sem reparti-los segundo uma ordem atribuída
posteriormente à sua própria produção, são apresentados segundo o critério
estritamente cronológico, permitindo a seus leitores um vasculhar não orientado
preliminarmente e apto a acolher diferentes usos. É uma pena que a edição brasileira
destes trabalhos não tenha preservado este mesmo critério.
A segunda vaga ainda faz-nos sentir as ondulações de sua chegada lenta e
progressiva. Ela se inicia em 1997, com Em defesa da sociedade. Este foi
o primeiro dos treze cursos que Foucault proferiu no Collège de France a
ser publicado. Compreendidos no período de 1970 a 1984, os cursos apresentam a
formulação dos problemas e das abordagens que comporão a analítica do poder e a
analítica da ética que, anteriormente à divulgação destas aulas, eram
conhecidos a partir dos recortes precisos e bem localizados dados pelos livros
que se estendem de Vigiar e punir (1975) a O cuidado de si
(1984). A singularidade dos cursos, além de sua constituição a partir da
oralidade das aulas consiste, sobretudo, na apresentação das hipóteses de uma
pesquisa que se encontrava em plena elaboração. A divulgação completa dos
cursos do Collège de France será em breve concluída. De todo conjunto, os
últimos a serem publicados são Subjectivité et vérité (curso de 1980-1981,
publicado em maio de 2014) e Théories et institutions pénales (curso de
1972, a ser publicado em 2015).
A terceira vaga, ainda apenas anunciada, por certo não será menos
potente. Pouco se sabe a seu respeito, à exceção das informações contidas no Dossier
Foucault inédit, do número especial de fevereiro de 2014 da revista Le
magazine littéraire. Os artigos que compõem este dossiê trazem somente
algumas suposições acerca das possibilidades de investigação que poderão ser
abertas pela imensa quantidade de arquivos inéditos de Foucault, recentemente
adquiridos pela BnF (Bibliothèque nationale de France). Trata-se de mais
de trinta e sete mil páginas manuscritas de textos inacabados, cartas, notas de
cursos e notas de leitura, incluindo-se o conjunto de páginas que formam o
projeto abandonado de “La chair et le corps” e o manuscrito,
praticamente concluído, do quarto volume da História da sexualidade, “Les
aveux de la chair”.
Desse modo, o movimento de composição e de recepção do pensamento de
Foucault continua ativo. Errante, como ele próprio se pretendia. A partir deste
movimento incessante, o conhecimento que seus leitores logram constituir a seu
respeito é marcadamente provisório. Não são poucas as regiões deste pensamento
que cada uma das vagas acima referidas permitiu – e por certo ainda permitirá –
virem à tona.
Um exemplo desta afirmação refere-se ao nosso conhecimento acerca do
contato do pensamento de Foucault com a Antiguidade e, de modo especial, com a
tragédia. Enquanto esse conhecimento permaneceu circunscrito aos livros, a
incursão do filósofo no pensamento antigo, realizada em O uso dos prazeres
e O cuidado de si, sugeria-se quase destoante de seus demais trabalhos.
Não foi incomum a surpresa de muitos dos leitores destes dois livros com a
ambiência que os revestia. A análise dos mecanismos de poder e dos saberes
objetivantes que, em conjunto, haviam permitido a Foucault caracterizar a forma
de constituição da subjetividade moderna segundo o padrão da normalização dará
lugar, nesses últimos volumes da História da sexualidade, ao estudo de
formas de constituição moral do sujeito antigo, apoiadas no exercício da
liberdade e na adesão a um estilo a ser dado à própria existência. O
estranhamento quanto à suposta mudança de ambiência já será consideravelmente
superado com Dits et écrits, cujo quarto volume é inteiramente
atravessado pelas incursões de Foucault na cultura e na filosofia antigas. Mas
será principalmente por meio dos cursos do Collège de France que o suposto
estranhamento cederá lugar à consciência de uma frequentação assídua e de uma
proximidade quase permanente de Foucault com a Antiguidade. Para além da
própria filosofia clássica e helenística, que serão o solo principal dos três
últimos cursos (A hermenêutica do sujeito, O governo de si e dos
outros, A coragem da verdade), particularmente o uso que Foucault
faz da tragédia grega balizará, em seus momentos inicial e final, a longa
trajetória de seu ensino no Collège de France.
A publicação recente da edição brasileira do primeiro curso do Collège
de France, ministrado entre dezembro de 1970 e março de 1971 (Aulas sobre a
vontade de saber), permite-nos situar mais precisamente este balizamento
dos cursos pelo uso da tragédia. Acerca do curso de 1971, que inicia a
trajetória de Foucault na renomada instituição, Daniel Defert esclarece, na
“Situação do curso”, uma especificidade importante de sua edição. Além das doze
aulas pronunciadas no Collège, a edição do curso reúne: a) uma conferência
sobre Nietzsche (“Aula sobre Nietzsche”), proferida em Montreal em abril de
1971, cujo conteúdo se aproxima do conteúdo da primeira das cinco conferências
realizadas na PUC do Rio de Janeiro em 1973 (A verdade e as formas jurídicas);
b) uma conferência (“O saber de Édipo”), proferida em Buffalo e posteriormente
em Cornell, respectivamente em março e em outubro de 1972, e que pode ser
considerada um desenvolvimento da última aula do curso (aula de 17 de março),
cujo conteúdo se aproximará do conteúdo da segunda conferência de A verdade
e as formas jurídicas.
Nos arquivos de Foucault disponíveis encontram-se, ao todo, sete versões
deste mesmo conteúdo presente na aula de 17 de março do curso de 1971 e na
conferência “O saber de Édipo” (apresentada, com modificações mais ou menos
relevantes, em Buffalo, em Cornell e no Rio). São versões do mesmo uso que
Foucault faz da tragédia de Édipo no período que corresponde aos primeiros anos
de ensino no Collège de France, uso que dará o contorno essencial à
problematização por ele empreendida naquele momento.
Nas pesquisas das quais haviam resultado os primeiros livros – História
da loucura na Idade clássica, O nascimento da clínica e As
palavras e as coisas – estavam em questão as condições de emergência
histórica e as transformações de práticas discursivas, caracterizadas pela
demarcação de diferentes campos de objetos de saber e que tomavam corpo em
diversas instituições, em esquemas de comportamento também diversos e em formas
de transmissão e de difusão variadas presentes numa determinada época. Para
Foucault, os princípios de exclusão e de escolha que determinaram a emergência
e as transformações das práticas discursivas por ele estudadas não remetiam a
um sujeito de conhecimento (transcendental ou histórico) que as fundaria em um
nível originário, mas antes a uma “vontade de saber anônima e polimorfa”. Se os
estudos empíricos sobre a constituição da loucura como doença mental pela
psicopatologia, sobre a medicina clínica e sobre as ciências humanas o haviam
permitido isolar algumas destas práticas discursivas e de suas transformações,
caberia então fornecer uma justificação teórica a esta vontade de saber
instalada no berço da cultura ocidental e da qual ainda seríamos herdeiros.
Segundo Foucault, a história da filosofia oferece dois grandes modelos teóricos
desta vontade de saber. Um deles estaria associado ao pensamento de Aristóteles
e o outro associado a Nietzsche. A discussão destes dois marcos teóricos será o
objeto da maior parte das aulas do curso Aulas sobre a vontade de saber.
De um lado, o “desejo de saber”, compreendido na Metafísica de
Aristóteles como universal e como natural, fundar-se-ia sobre um pertencimento
primeiro entre conhecimento, prazer e verdade. Este pertencimento, já manifesto
na sensação, assegurará a passagem contínua desta forma primeira de conhecimento
(sensação) para a forma terminal de conhecimento, consistente na contemplação
teórica. De outro lado, está o modelo de Nietzsche, no qual o conhecimento é
uma invenção que resulta de um jogo de instintos, impulsos, desejos e vontade
de apropriação. Se ele se apresenta como conhecimento da verdade é porque a
produz pelo jogo de uma falsificação primeira que estabelece a própria
distinção entre o verdadeiro e o falso. Para Foucault, o modelo nietzscheano de
um “conhecimento interessado” está o mais distante possível dos postulados da
metafísica clássica.
Ora, as leituras que Foucault faz da tragédia de Édipo inserem-se neste
ponto. O filósofo encontrará em Édipo um dos recursos mais profícuos para
colocar em questão, segundo a perspectiva do chamado modelo nietzscheano, a
vontade de saber que domina a nossa cultura. Expressão privilegiada da
constituição da verdade judiciária no sistema grego clássico, Édipo revelaria
um modo de afirmação da verdade que seria determinante na história do saber
ocidental. A justiça que tem lugar na tragédia, a partir da forma jurídica do
inquérito, estará ligada a “um saber em que a verdade era posta como visível,
constatável, mensurável, obedecendo a leis semelhantes às que regem a ordem do
mundo, e cuja descoberta detém consigo um valor purificador”. Segundo Foucault,
a história de Édipo é um símbolo de uma forma dada pela Grécia clássica à
verdade, em suas relações com o poder e com a pureza-impureza, segundo a qual
saber e poder encontram-se separados e não se pertencem. O uso feito por
Foucault da tragédia de Édipo lhe permitirá denunciar esse mito. Em Édipo
Rei estaria em jogo, antes de tudo, uma luta entre formas de poder-saber.
Este será o ponto de partida, e também um dos eixos estruturantes, da
genealogia do poder realizada pelo filósofo
O uso da tragédia balizará também o momento final da trajetória de
Foucault no Collège de France, momento em que realiza uma analítica da ética a
partir do estudo das formas de constituição do sujeito moral na Antiguidade.
Nesse contexto, não será Sófocles, mas será sobretudo Eurípedes o objeto de uma
leitura minuciosa. É no âmbito da problematização histórica do preceito
filosófico-moral do “cuidado de si” nas culturas clássica e helenística que
terá lugar, nos dois últimos cursos do Collège, o estudo da parrêsia antiga
(dizer-verdadeiro ou coragem da verdade). Em O governo de si e dos outros
o foco principal será a parrêsia política, que compreenderá, de um lado, a
palavra verdadeira proferida pelo cidadão perante a assembleia (parrêsia
democrática) e, de outro, a palavra verdadeira proferida pelo filósofo perante
o governante a fim de incitá-lo a bem governar a si mesmo e a cidade (parrêsia
autocrática). A principal referência para o estudo da parrêsia democrática será
a leitura da tragédia Íon de Eurípides, na qual, segundo Foucault,
encontraríamos consignado o momento da fundação mítica da parrêsia democrática
em Atenas. Apoiando-se em uma longa e detalhada análise da tragédia, Foucault
discutirá então o que entende ser a circularidade essencial existente entre a
democracia antiga, o dizer-verdadeiro e o jogo político na cidade grega. Em
seguida, outras tragédias de Eurípedes, em especial Orestes, serão
retomadas para indicar as ambiguidades da implicação entre a democracia antiga
e a palavra verdadeira proferida em seu seio.
A publicação dos cursos do Collège de France permite-nos, assim,
compreender mais precisamente os usos da tragédia para a genealogia do poder e
para a genealogia da ética empreendidas por Foucault. Ao fazê-lo, permite-nos
redimensionar o significado do contato do pensamento de Foucault com a
Antiguidade para construção de uma ontologia do presente. Desse modo, o
constante movimento de constituição e de recepção de seus trabalhos continua a
favorecer os deslocamentos de um pensamento que se pretende incompleto e em
contínua elaboração.
Márcio Alves da Fonseca
é
Professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP, autor de Michel Foucault e
a constituição do sujeito (Educ) e Michel Foucault e o Direito
(Saraiva), recentemente publicado na França pela editora L’Harmattan (Michel
Foucault et le droit). Em colaboração com Salma Tannus Muchail, traduziu os
livros de Foucault A hermenêutica do sujeito (Martins Fontes) e Gênese
e estrutura da Antropologia de Kant (Loyola)
http://revistacult.uol.com.br/home/2014/06/foucault-leitor-assiduo-da-tragedia/
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