Um caso médico (Anton Pavlovitch Tchekhov) - (1860-1904)
Um telegrama enviado da fábrica dos Lialikov pedia ao professor que viesse o mais depressa possível.
A filha da Senhora Lialikov, que devia ser a proprietária da fábrica, estava doente; era tudo o que se podia perceber num longo telegrama mal redigido. Por isso o professor não esteve para se incomodar; contentou-se em enviar, para o substituir, o seu ajudante Koroliov. Tinha que se descer na terceira estação para lá de Moscow e andar em seguida, de carro, quatro «verstas». Na estação, esperava o ajudante um carro de três cavalos. O cocheiro tinha um chapéu de penas de pavão e, com voz vibrante, como um soldado, respondia sempre a todas as perguntas: «De modo algum!» ou «Exatamente!».
Era num sábado de tarde. Punha-se o Sol. Da fábrica para a estação vinham grupos de operários que cumprimentavam para o carro onde seguia o médico. Aquele fim de dia, os palacetes senhoriais e as casas de verão, dos dois lados da estrada, os amieiros, a calma impressão que de tudo se exalava, na hora em que, já quase a repousarem, os campos, os bosques e o Sol pareciam preparar-se para descansar e talvez até para rezar ao mesmo tempo que os operários — tudo isto encantava Koroliov.
Nascido e educado em Moscow, o médico não conhecia o campo e nunca se tinha interessado pelas fábricas; nunca tinha visitado nenhuma; mas, depois do que tinha lido sobre este assunto, tinha-lhe acontecido estar em casa de proprietários e falar com eles. E, quando via de longe ou de perto uma fábrica, pensava que por fora tudo parecia calmo e pacífico, mas que lá dentro deviam reinar a impenetrável ignorância e o egoísmo obtuso dos proprietários, o trabalho aborrecido e insalubre dos operários, e as intrigas, e o «vodka» e a bicharia…
E agora, à medida que se afastavam do carro com respeito e medo, lia no rosto do operário, nos bonés, no andar, a porcaria, o alcoolismo, o enervamento, o atordoamento em que viviam.
Entrou pelo portão grande da fábrica. Apareceram de ambos os lados as pequenas casas dos operários, figuras de mulher, e, às cancelas da entrada, roupa branca e mantas. O cocheiro, sem segurar os cavalos, gritava: «Cuidado!».
Num pátio grande, sem o mínimo sinal de erva, levantavam-se cinco grandes corpos de edifícios com altas chaminés, afastados uns dos outros, com armazéns e alpendres, tudo mergulhado numa espécie de neblina cinzenta, como uma flor de poeira. Aqui e além, como os oásis no deserto, havia uns jardinzitos enfezados e os telhados verdes e vermelhos das casas da Administração. O cocheiro, sofreando de repente os cavalos, parou diante duma casa que fora há pouco pintada de cinzento. Os lilases do jardim estavam cobertos de poeira, e o pórtico, pintado de amarelo, cheirava fortemente a tinta.
— Faça favor de entrar, Senhor Doutor — disseram vozes de mulher à porta da entrada e no limiar da antecâmara. Ouviram-se depois suspiros e murmúrios.
— Faça favor de entrar… Estamos à sua espera já há tanto tempo… Foi mesmo uma desgraça. Por aqui, faça favor… A Senhora Lialikov, já de idade e corpulenta, vestida de seda negra e com mangas à moda, mas, pelo que parecia, simples e pouco instruída, olhava para o doutor com receio, sem se atrever a estender-lhe a mão; não ousava fazê-lo.
Perto dela, encontrava-se uma criatura de cabelos curtos, magra e já nada nova, que trazia uma blusa colorida e usava luneta. Os criados chamavam-lhe Cristina Dmitrievna e Koroliov adivinhou ser a governante. Como era a única pessoa instruída da casa, tinham-na sem dúvida encarregado de receber o médico, porque logo se apressou a expor, com pormenores de todo inúteis, as causas da doença, mas sem dizer quem estava doente nem de que se tratava. Koroliov e a governante falavam sentados, enquanto a dona da casa esperava, Imóvel, junto da porta. No decurso da conversação, veio Koroliov a saber que a doente era uma rapariga de vinte anos, Lisa, filha única da Senhora Lialikov. Estava enferma há muito tempo e já a tinham tratado vários médicos. Na noite anterior, sentira, desde a tarde, tais palpitações que ninguém em casa tinha dormido; chegara-se a recear que morresse.
— Ela, na verdade, tem sido doentinha desde criança — contava Cristina Dmitrievna com uma voz cantada e limpando ininterruptamente os lábios com a mão. — Os médicos dizem que são nervos, mas ainda em pequena meteram-lhe para dentro os humores frios, e daí é que vem todo o mal, acho eu.
Passaram ao quarto da doente. Já mulher, alta, bem feita, mas feia, parecida com a mãe, com os mesmos olhitos e a parte inferior do rosto larga e exageradamente desenvolvida, despenteada, os cobertores puxados até ao queixo, a rapariga deu de princípio a Koroliov a impressão de uma pobre criatura, enferma, recolhida por piedade. Ninguém acreditaria que fosse a herdeira dos cinco enormes edifícios da fábrica.
— Venho tratar de si — disse Koroliov. — Bom dia, Menina. Disse o nome e apertou-lhe a mão, mão grande, feia e fria. Ela soergueu-se e, já muito acostumada aos médicos, indiferente à nudez das espáduas e dos braços, deixou-se auscultar.
— Sinto umas palpitações — disse ela. — Toda a noite… foi uma coisa terrível… julguei que morria de medo. Dê-me qualquer coisa, a ver se isto acaba.
— Não tenha receio, vou já receitar.
Koroliov examinou-a e encolheu os ombros.
— O coração está bom — disse ele; — tudo vai bem, está tudo em ordem. Os nervos talvez um pouco abalados… mas é também coisa vulgar. A crise já passou, parece. Deite-se e veja se dorme…
Neste momento trouxeram um candeeiro. A doente piscou os olhos e, de repente, pousando a cabeça nas mãos, pôs-se a chorar.
E a impressão dum ser infeliz e feio desapareceu. Koroliov já não dava pelos olhos pequeninos nem pela parte do rosto anormalmente desenvolvida. Via uma suave expressão de sofrimento, muito comovedora e espiritual, e a rapariga, no conjunto, apareceu-lhe elegante, feminina e simples. E já a queria acalmar, não por medicamentos ou conselhos, mas por uma simples palavra graciosa. A mãe puxou a si a filha e beijou-lhe a testa. E na expressão da face, quanta tristeza, quanto desgosto!
Tinha criado e educado a filha sem se poupar a nada; tinha posto todo o cuidado em lhe mandar ensinar francês, música e dança. Tinha-lhe dado uma dúzia de mestres, tinha chamado os melhores médicos, tomado uma governante — e não compreendia donde vinham aquelas lágrimas e tantos sofrimentos! Não compreendia, atrapalhava-se e tinha uma expressão de culpabilidade; e andava desolada, inquieta, como se tivesse esquecido alguma coisa de muito urgente, como se tivesse tido alguma negligência, como se não tivesse chamado alguém. Quem? Não sabia…
— Lisaunka — disse ela, apertando a filha ao peito -, minha querida, minha pomba, minha filhinha, que tens tu? Diz à mãezinha… Tem pena de mim… Diz…
Ambas choravam amargamente. Koroliov, sentando-se na borda da cama, pegou na mão de Lisa.
— Vamos, não chore mais — disse-lhe ele com um tom de carícia -. Há lá razão para isso… Não há nada no mundo que seja digno dessas lágrimas. Vá, não chore mais. Assim não pode ser…
E pensou:
— Já era tempo de a casar…
— O médico da fábrica dava-lhe brometos — disse a governante — mas notei que só lhe faziam mal. Eu acho que para o coração o bom são umas gotas… ai, esquece-me o nome… Junquilho, hem?
E recomeçou com os seus pormenores. Interrompia Koroliov, impedia-o de falar e lia-se-lhe no rosto o tormento que lhe causava pensar que, sendo a mulher mais instruída da casa, devia falar sem interrupção com o médico — e falar de medicina, claro.
Koroliov estava embaraçado.
— Não acho nada de especial — disse ele à mãe ao sair do quarto. — Como o médico da fábrica tratou sua filha, pode continuar. O tratamento que lhe deu até aqui foi bom; não vejo que seja preciso mudar. Para quê? É uma doença vulgar; não tem nada de grave…
Falava sem pressa e ia calçando as luvas; a Senhora Lialikov olhava-o de lágrimas nos olhos, imóvel.
— Ainda tenho meia hora até o comboio das dez; terei tempo de apanhá-lo, não…?
— O Senhor Doutor não desejaria ficar? — perguntou a mãe, e de novo as lágrimas lhe correram pela cara.
Custa-me tanto incomodá-lo; mas, pelo amor de Deus — continuou, a meia voz e voltando-se para a porta -, faça-me esse favor. Só tenho esta filha… Assustou-nos tanto a noite passada… Nem estou ainda em mim… Pelo amor de Deus, não se vá embora!
Koroliov ainda quis dizer que tinha muito que fazer em Moscow, que a família estava à espera, que lhe era muito difícil passar uma tarde e uma noite fora da clínica; olhou para ela: suspirou e pôs-se a descalçar as luvas, silencioso.
Acenderam todas as velas e todos os candeeiros da sala e da saleta; sentado junto do piano de cauda, Koroliov folheou a música, depois foi contemplar os quadros e os retratos. Os quadros, com suas molduras douradas, eram vistas da Criméia, um mar encapelado com um barquito, um monge católico com um cálice de licor — tudo pobre, lambido, sem talento… Nos retratos, nenhuma figura bela, interessante: faces largas, olhos espantados. Lialikov, o pai de Lisa, tinha a testa baixa e um ar satisfeito; o uniforme ficava-lhe como uma espécie de saco sobre o corpo grande e vulgar; no peito uma medalha e a insígnia da Cruz Vermelha. Cultura estreita, luxo de ocasião, um luxo que não tinha motivos nem vinha a propósito — como aquele uniforme. O brilho dos soalhos irrita, o lustre também; e pensa-se, nem se sabe porquê, na história do comerciante que ia tomar banho de medalha de honra ao pescoço… Na antecâmara havia murmúrios e alguém ressonava suavemente. De súbito, no pátio, ressoaram uns sons agudos, sacudidos, metálicos, que Koroliov nunca tinha ouvido e não soube explicar. Ecoaram na sua alma dum modo bem desagradável e estranho.
— Acho que não ficava aqui por nada deste mundo — pensou ele.
E tornou a folhear a música.
A governante entrou e chamou a meia voz:
— Senhor Doutor, pode vir jantar…?
Koroliov seguiu-a.
A mesa, grande, estava coberta de aperitivos e de vinhos; mas só havia duas pessoas: ele e Cristina Dmitrievna. Ela bebia madeira, comia depressa e falava contemplando-o pela luneta.
— Os operários estão muito satisfeitos conosco. Todos os invernos dão nesta fábrica espetáculos em que eles próprios representam. Há também, naturalmente, conferências com projeções, uma sala de chá magnífica; e tudo o mais… Têm muita dedicação por nós; quando souberam que a Lisaunka estava pior, mandaram fazer umas rezas. São pouco instruídos mas têm muito bons sentimentos.
— Parece que não há nenhum homem em casa, não?
— Nenhum. Piotre Nikanorytch morreu há ano e meio e ficamos sozinhas. Vivemos as três, no Verão aqui, no Inverno em Moscow. Já estou nesta casa há onze anos. É como se estivesse em minha casa.
Serviram esturjão, croquetes de frango e uma compota. Os vinhos eram caros, vinhos de França.
— Faça favor, Senhor Doutor… Não faça cerimônias… Coma — dizia Cristina Dmitrievna comendo e limpando a boca à mão (via-se que estava realmente à vontade). Faça favor de comer.
Depois do jantar, levou o médico a um quarto onde lhe tinham preparado uma cama. Mas não tinha sono; o quarto era quentíssimo e cheirava a tintas; vestiu o sobretudo e saiu.
Fora, havia fresco. Já havia um prenúncio de alvorada e, no ar úmido, desenhavam-se os cinco edifícios, com as chaminés, os barracões e os armazéns. Como era domingo, não se trabalhava; as janelas estavam escuras e só duas, num dos edifícios onde ainda estava aceso um forno, pareciam incendiadas; de quando em quando, saía lume pela chaminé, de mistura com o fumo. Ao longe, para lá do pátio, coaxavam rãs e um rouxinol cantava.
Ao olhar os casarões da fábrica e as barracas dos operários, Koroliov voltou aos seus pensamentos do costume. Tinham-se instituído espetáculos para os operários, projeções, médicos privativos, toda a espécie de melhoramentos: mas os operários que ele vira de tarde, na estrada, em nada diferiam dos que tinha visto na sua infância, quando não havia para eles nem espetáculos, nem melhoramentos.
Era médico e tinha sido obrigado a fazer uma ideia exata das doenças crônicas, cuja causa inicial é incompreensível e incurável; considerava do mesmo modo as fábricas como um equívoco cujas causas são também obscuras e inelutáveis. Todos os melhoramentos da sorte dos operários não lhe apareciam, claro, como supérfluos, mas comparava-os ao tratamento das doenças incuráveis.
— Há certamente um engano nesta coisa toda… — pensou olhando as janelas purpúreas. Mil e quinhentos ou dois mil operários trabalham sem descanso, num ambiente insalubre, para fabricarem péssima chita. Vivem na fome e só de tempos a tempos a taberna os liberta do pesadelo. Uma centena de pessoas vigia-lhes o trabalho e a vida destes contramestres passa-se a aplicar multas, a proferir injúrias e a cometer injustiças. E só duas ou três pessoas, chamadas patrões, aproveitam com os lucros, apesar de não trabalharem e de terem desprezo pela chita ordinária. Mas que lucros! E de que maneira os aproveitam! A Lialikov e a filha são umas infelizes e mete pena vê-las. Só a solteirona, a estúpida Cristina Dmitrievna vive à vontade! E trabalha-se numa fábrica destas, com cinco oficinas, e vende-se má chita nos mercados do Oriente, para que uma Cristina Dmitrievna possa comer esturjão e beber madeira.
De repente, repetiram-se os sons estranhos que Koroliov tinha notado antes do jantar. Perto de um dos edifícios, alguém batia numa placa metálica e logo amortecia a ressonância, de modo que os sons eram breves, ásperos, mal definidos, qualquer coisa como «dê… dê.. dê…». Depois, meio minuto de silêncio. E, perto do outro edifício, outros sons sacudidos, mas mais baixos, graves: «dran… dran… dran…».
Repetiram-nos onze vezes. Eram, evidentemente, os guardas a darem as onze horas. Junto do terceiro edifício, ouviu-se: «jak… jak… jak…». A mesma coisa diante de cada um dos edifícios, depois por detrás das barracas e às portas.
Parecia que, na calma da noite, os sons eram produzidos por um monstro de olhos de púrpura: o próprio Diabo, que era aqui o senhor de patrões e de operários e que a uns e outros enganava.
Koroliov saiu para os campos.
— Quem está aí? — gritaram-lhe, com voz grosseira.
— Exatamente como numa prisão — pensou ele.
E não respondeu nada.
Fora, ouviam-se melhor os rouxinóis e as rãs. Sentia-se o cheiro da noite de Maio. Da estação vinham ruídos de comboios; para outro lado, cantavam galos sonolentos; contudo, a noite estava calma: a natureza dormia pacificamente.
No campo, não longe da fábrica, erguia-se o esqueleto duma casa de toros; ao lado, encontravam-se materiais de construção. Koroliov sentou-se numas tábuas e continuou a pensar.
— Só a governante vive aqui a seu gosto e a fábrica trabalha para a satisfazer. Mas é apenas uma aparência; é uma personagem imaginária: o patrão para quem tudo se faz aqui é o Diabo.
E pensava no Diabo em que não acreditava. E voltava-se para as duas janelas que o lume iluminava.
Parecia-lhe que, por estes olhos de púrpura, o próprio Diabo o olhava: numa palavra, a força desconhecida que estabeleceu as relações entre os fracos e os fortes, o erro grosseiro que nada agora pode emendar. É necessário que o forte impeça o fraco de viver: tal é a lei da natureza. Mas isto não é compreensível e não entra facilmente no espírito senão à luz dum artigo de jornal ou dum manual. No tumultuar da vida quotidiana e no entrelaçar de todos os nadas de que se entretecem as relações humanas, não parece uma lei; é um absurdo lógico, no qual o forte e o fraco são vítimas das suas relações mútuas e se submetem involuntariamente a uma força condutora desconhecida, que reside fora da vida e é estranha ao homem.
Assim pensava Koroliov, sentado sobre as tábuas, invadido pouco a pouco pela impressão de que essa força desconhecida e misteriosa estava realmente perto dele e o contemplava.
Entretanto, o céu a leste empalidecia; os minutos precipitavam-se. Os cinco edifícios da fábrica e as chaminés tinham, sobre o fundo cinzento da madrugada, nessa hora em que não se via alma viva, em que tudo parecia morto, — os edifícios e as chaminés tinham um aspecto especial, diferente do de dia. Esquecia-se por completo que houvesse lá dentro motores a vapor, eletricidade e telefones; mais depressa se pensava nas habitações lacustres e na cidade de pedra; sentia-se a presença de uma força grosseira, inconsciente…
E de novo se ouviu:
— Dê… dê… dê… dê…
Doze vezes.
Depois o silêncio — meio minuto de silêncio -, e, na outra extremidade do pátio:
— Dran… dran… dran…
— É bem desagradável, esta coisa… — pensou Koroliov.
E logo ouviu, num terceiro lugar:
— Jak… jak… jak…
O ruído era sacudido, áspero, exatamente como se estivesse aborrecido.
— Jak… jak…
Para dar a meia-noite foram precisos quatro minutos.
Depois, silêncio completo. E, de novo, a impressão de que tudo estava morto à volta.
Koroliov, depois de estar ainda algum tempo sentado, voltou para casa. Mas ficou ainda muito tempo sem se deitar. Nos quartos vizinhos conversava-se. Ouvia-se o perpassar de pantufas e de pés descalços.
— Será uma crise? — pensou o médico.
Saiu para ir ver a doente. No quarto havia lá muita claridade; na parede da sala tremia um fraco raio de sol, através do nevoeiro da manhã. A porta estava aberta e Lisa sentara-se numa poltrona perto do leito, de roupão, envolta num xale e com os cabelos caídos. Os estores das janelas estavam corridos.
— Como se sente? — perguntou-lhe Koroliov.
— Obrigada…
Tomou-lhe o pulso, depois arranjou-lhe os cabelos que tinha sobre a testa.
— Não dorme? Está um tempo limpo, é a Primavera… Lá fora cantam os rouxinóis, e a Menina fica aí sentada, às escuras, a pensar não se sabe em quê…
Ela escutava-o e olhava-o. Tinha uns olhos tristes, inteligentes e via-se que queria dizer qualquer coisa.
— Isto dá-lhe muitas vezes? — perguntou ele.
Ela mexeu os lábios e respondeu:
— Muitas vezes… Quase todas as noites me sinto mal. Neste momento, os guardas, no pátio, começaram a dar as duas horas.
Ouviu-se: «Dê… dê…» Lisa teve um sobressalto.
— Estes sons incomodam-na? — perguntou o médico.
— Não sei… — respondeu ela, refletindo — . . aqui tudo me incomoda, tudo me aborrece. Sinto compaixão na sua voz; pareceu-me desde o primeiro minuto, não sei porquê, que consigo podia falar de tudo…
— Fale, faça favor.
— Vou dar-lhe a minha opinião. Parece-me que não estou doente, mas atormento-me e tenho medo porque isto tem que ser assim e não pode ser de outra maneira. O ser mais saudável não pode deixar de inquietar-se quando um bandido lhe ronda a porta. Têm todos os cuidados comigo — continuou baixando os olhos e sorrindo timidamente. Estou muito reconhecida e não contesto a utilidade da medicina; mas desejaria falar, não com um médico, mas com alguém que estivesse perto do meu espírito: um amigo que me compreendesse e me demonstrasse que tenho ou não tenho razão.
— Não tem amigos?
— Sinto-me só… Tenho minha mãe e gosto dela. Mas sinto-me só. Calhou assim a minha vida… Quem está só lê muito, mas fala pouco e ouve pouco também; a vida é-lhe misteriosa. É-se místico e vê-se o Diabo onde ele não está; a Tamara de Lermontov era só e via o Demônio.
— Lê muito?
— Muito. Tenho todo o tempo livre, de manhã à noite. De dia leio, à noite tenho a cabeça vazia; em lugar de ideias, passam-me vagas sombras…
— Vê qualquer coisa de noite? — perguntou Koroliov.
— Não… mas sinto.
Sorriu de novo e levantou os olhos para o médico. O seu olhar era cheio de melancolia e cheio de inteligência. Pareceu a Koroliov que Lisa tinha confiança nele, lhe queria falar sinceramente e tinha pensamentos semelhantes aos seus. Mas ela calara-se e esperava talvez que ele falasse.
E sabia bem o que tinha a dizer-lhe. Era evidente que se tornava necessário que ela abandonasse o mais depressa possível os cinco edifícios da fábrica e o seu milhão, se acaso o tinha, e deixasse aquele Diabo que de noite a olhava. Era igualmente claro para Koroliov que ela também o pensava e que esperava que lho dissesse alguém em quem ela tivesse confiança.
Mas o médico não sabia por onde começar… Como havia de ser?… É difícil perguntar aos condenados por que razão os condenaram; e é também aborrecido perguntar aos ricos por que motivo têm necessidade de tanto dinheiro; por que fazem tão mau uso da sua riqueza, por que não a deixam, mesmo quando vêem que aí reside a sua infelicidade… E se se começa a falar disto a conversação é geralmente embaraçada e longa.
— Como hei de dizê-lo? — pensava Koroliov. — E será preciso?
E disse o que queria, não diretamente, mas com uns desvios:
— A Menina está descontente da sua situação de proprietária de fábrica e de herdeira rica; não acredita nos seus direitos e não dorme. É seguramente melhor do que se estivesse satisfeita e dormisse profundamente pensando que tudo vai bem. A sua insônia é respeitável e, seja o que for, é bom sinal. Com seus pais seria impossível uma conversa semelhante àquela que hoje temos aqui. De noite, não conversavam, dormiam profundamente; mas nós, os desta geração, dormimos mal. Preguiçamos, falamos muito, e consideramos continuamente se temos ou não temos razão. Para os nossos filhos e para os nossos netos já essa questão estará resolvida. Verão mais claro do que nós. Dentro de cinquenta anos, a vida será bela; é pena que não possamos viver até lá. Devia ser bem interessante…
— Que farão então os nossos filhos e os nossos netos? — perguntou Lisa.
— Não sei… Talvez deixem tudo e partam…
— Para onde?
— Para onde? Mas para onde quiserem — disse Koroliov a rir-se. — Há poucos lugares para onde possa ir um homem bom e inteligente?
Olhou para o relógio.
— Já nasceu o Sol. É tempo que durma. Dispa-se e repouse à vontade. Tenho muito prazer em a ter conhecido — disse-lhe ele, apertando-lhe a mão. — É interessante e simpática. Boa noite!
Voltou para o quarto e deitou-se.
No dia seguinte de manhã, quando trouxeram o carro, toda a gente veio acompanhar o médico à porta. Lisa, de vestido branco como num dia de festa, tinha uma flor nos cabelos. Pálida, lânguida, contemplava Koroliov, como de noite, com ar triste e inteligente. Sorria e falava sempre com a mesma expressão de lhe querer dizer alguma coisa de particular, de grave, alguma coisa que fosse só para ele. Ouviram-se as cotovias cantar, os sinos tocavam. As janelas da fábrica brilhavam alegremente. Ao atravessar o pátio e enquanto o conduziam à estação, Koroliov já não pensava nos operários nem nas habitações lacustres, nem no Diabo. Pensava no tempo, já talvez próximo, em que a vida seria tão luminosa e alegre como essa manhã calma de Maio. E pensava em como era agradável, em semelhante manhã de Primavera, viajar num bom carro, com os seus três cavalos, e aquecer-se ao sol.
A filha da Senhora Lialikov, que devia ser a proprietária da fábrica, estava doente; era tudo o que se podia perceber num longo telegrama mal redigido. Por isso o professor não esteve para se incomodar; contentou-se em enviar, para o substituir, o seu ajudante Koroliov. Tinha que se descer na terceira estação para lá de Moscow e andar em seguida, de carro, quatro «verstas». Na estação, esperava o ajudante um carro de três cavalos. O cocheiro tinha um chapéu de penas de pavão e, com voz vibrante, como um soldado, respondia sempre a todas as perguntas: «De modo algum!» ou «Exatamente!».
Era num sábado de tarde. Punha-se o Sol. Da fábrica para a estação vinham grupos de operários que cumprimentavam para o carro onde seguia o médico. Aquele fim de dia, os palacetes senhoriais e as casas de verão, dos dois lados da estrada, os amieiros, a calma impressão que de tudo se exalava, na hora em que, já quase a repousarem, os campos, os bosques e o Sol pareciam preparar-se para descansar e talvez até para rezar ao mesmo tempo que os operários — tudo isto encantava Koroliov.
Nascido e educado em Moscow, o médico não conhecia o campo e nunca se tinha interessado pelas fábricas; nunca tinha visitado nenhuma; mas, depois do que tinha lido sobre este assunto, tinha-lhe acontecido estar em casa de proprietários e falar com eles. E, quando via de longe ou de perto uma fábrica, pensava que por fora tudo parecia calmo e pacífico, mas que lá dentro deviam reinar a impenetrável ignorância e o egoísmo obtuso dos proprietários, o trabalho aborrecido e insalubre dos operários, e as intrigas, e o «vodka» e a bicharia…
E agora, à medida que se afastavam do carro com respeito e medo, lia no rosto do operário, nos bonés, no andar, a porcaria, o alcoolismo, o enervamento, o atordoamento em que viviam.
Entrou pelo portão grande da fábrica. Apareceram de ambos os lados as pequenas casas dos operários, figuras de mulher, e, às cancelas da entrada, roupa branca e mantas. O cocheiro, sem segurar os cavalos, gritava: «Cuidado!».
Num pátio grande, sem o mínimo sinal de erva, levantavam-se cinco grandes corpos de edifícios com altas chaminés, afastados uns dos outros, com armazéns e alpendres, tudo mergulhado numa espécie de neblina cinzenta, como uma flor de poeira. Aqui e além, como os oásis no deserto, havia uns jardinzitos enfezados e os telhados verdes e vermelhos das casas da Administração. O cocheiro, sofreando de repente os cavalos, parou diante duma casa que fora há pouco pintada de cinzento. Os lilases do jardim estavam cobertos de poeira, e o pórtico, pintado de amarelo, cheirava fortemente a tinta.
— Faça favor de entrar, Senhor Doutor — disseram vozes de mulher à porta da entrada e no limiar da antecâmara. Ouviram-se depois suspiros e murmúrios.
— Faça favor de entrar… Estamos à sua espera já há tanto tempo… Foi mesmo uma desgraça. Por aqui, faça favor… A Senhora Lialikov, já de idade e corpulenta, vestida de seda negra e com mangas à moda, mas, pelo que parecia, simples e pouco instruída, olhava para o doutor com receio, sem se atrever a estender-lhe a mão; não ousava fazê-lo.
Perto dela, encontrava-se uma criatura de cabelos curtos, magra e já nada nova, que trazia uma blusa colorida e usava luneta. Os criados chamavam-lhe Cristina Dmitrievna e Koroliov adivinhou ser a governante. Como era a única pessoa instruída da casa, tinham-na sem dúvida encarregado de receber o médico, porque logo se apressou a expor, com pormenores de todo inúteis, as causas da doença, mas sem dizer quem estava doente nem de que se tratava. Koroliov e a governante falavam sentados, enquanto a dona da casa esperava, Imóvel, junto da porta. No decurso da conversação, veio Koroliov a saber que a doente era uma rapariga de vinte anos, Lisa, filha única da Senhora Lialikov. Estava enferma há muito tempo e já a tinham tratado vários médicos. Na noite anterior, sentira, desde a tarde, tais palpitações que ninguém em casa tinha dormido; chegara-se a recear que morresse.
— Ela, na verdade, tem sido doentinha desde criança — contava Cristina Dmitrievna com uma voz cantada e limpando ininterruptamente os lábios com a mão. — Os médicos dizem que são nervos, mas ainda em pequena meteram-lhe para dentro os humores frios, e daí é que vem todo o mal, acho eu.
Passaram ao quarto da doente. Já mulher, alta, bem feita, mas feia, parecida com a mãe, com os mesmos olhitos e a parte inferior do rosto larga e exageradamente desenvolvida, despenteada, os cobertores puxados até ao queixo, a rapariga deu de princípio a Koroliov a impressão de uma pobre criatura, enferma, recolhida por piedade. Ninguém acreditaria que fosse a herdeira dos cinco enormes edifícios da fábrica.
— Venho tratar de si — disse Koroliov. — Bom dia, Menina. Disse o nome e apertou-lhe a mão, mão grande, feia e fria. Ela soergueu-se e, já muito acostumada aos médicos, indiferente à nudez das espáduas e dos braços, deixou-se auscultar.
— Sinto umas palpitações — disse ela. — Toda a noite… foi uma coisa terrível… julguei que morria de medo. Dê-me qualquer coisa, a ver se isto acaba.
— Não tenha receio, vou já receitar.
Koroliov examinou-a e encolheu os ombros.
— O coração está bom — disse ele; — tudo vai bem, está tudo em ordem. Os nervos talvez um pouco abalados… mas é também coisa vulgar. A crise já passou, parece. Deite-se e veja se dorme…
Neste momento trouxeram um candeeiro. A doente piscou os olhos e, de repente, pousando a cabeça nas mãos, pôs-se a chorar.
E a impressão dum ser infeliz e feio desapareceu. Koroliov já não dava pelos olhos pequeninos nem pela parte do rosto anormalmente desenvolvida. Via uma suave expressão de sofrimento, muito comovedora e espiritual, e a rapariga, no conjunto, apareceu-lhe elegante, feminina e simples. E já a queria acalmar, não por medicamentos ou conselhos, mas por uma simples palavra graciosa. A mãe puxou a si a filha e beijou-lhe a testa. E na expressão da face, quanta tristeza, quanto desgosto!
Tinha criado e educado a filha sem se poupar a nada; tinha posto todo o cuidado em lhe mandar ensinar francês, música e dança. Tinha-lhe dado uma dúzia de mestres, tinha chamado os melhores médicos, tomado uma governante — e não compreendia donde vinham aquelas lágrimas e tantos sofrimentos! Não compreendia, atrapalhava-se e tinha uma expressão de culpabilidade; e andava desolada, inquieta, como se tivesse esquecido alguma coisa de muito urgente, como se tivesse tido alguma negligência, como se não tivesse chamado alguém. Quem? Não sabia…
— Lisaunka — disse ela, apertando a filha ao peito -, minha querida, minha pomba, minha filhinha, que tens tu? Diz à mãezinha… Tem pena de mim… Diz…
Ambas choravam amargamente. Koroliov, sentando-se na borda da cama, pegou na mão de Lisa.
— Vamos, não chore mais — disse-lhe ele com um tom de carícia -. Há lá razão para isso… Não há nada no mundo que seja digno dessas lágrimas. Vá, não chore mais. Assim não pode ser…
E pensou:
— Já era tempo de a casar…
— O médico da fábrica dava-lhe brometos — disse a governante — mas notei que só lhe faziam mal. Eu acho que para o coração o bom são umas gotas… ai, esquece-me o nome… Junquilho, hem?
E recomeçou com os seus pormenores. Interrompia Koroliov, impedia-o de falar e lia-se-lhe no rosto o tormento que lhe causava pensar que, sendo a mulher mais instruída da casa, devia falar sem interrupção com o médico — e falar de medicina, claro.
Koroliov estava embaraçado.
— Não acho nada de especial — disse ele à mãe ao sair do quarto. — Como o médico da fábrica tratou sua filha, pode continuar. O tratamento que lhe deu até aqui foi bom; não vejo que seja preciso mudar. Para quê? É uma doença vulgar; não tem nada de grave…
Falava sem pressa e ia calçando as luvas; a Senhora Lialikov olhava-o de lágrimas nos olhos, imóvel.
— Ainda tenho meia hora até o comboio das dez; terei tempo de apanhá-lo, não…?
— O Senhor Doutor não desejaria ficar? — perguntou a mãe, e de novo as lágrimas lhe correram pela cara.
Custa-me tanto incomodá-lo; mas, pelo amor de Deus — continuou, a meia voz e voltando-se para a porta -, faça-me esse favor. Só tenho esta filha… Assustou-nos tanto a noite passada… Nem estou ainda em mim… Pelo amor de Deus, não se vá embora!
Koroliov ainda quis dizer que tinha muito que fazer em Moscow, que a família estava à espera, que lhe era muito difícil passar uma tarde e uma noite fora da clínica; olhou para ela: suspirou e pôs-se a descalçar as luvas, silencioso.
Acenderam todas as velas e todos os candeeiros da sala e da saleta; sentado junto do piano de cauda, Koroliov folheou a música, depois foi contemplar os quadros e os retratos. Os quadros, com suas molduras douradas, eram vistas da Criméia, um mar encapelado com um barquito, um monge católico com um cálice de licor — tudo pobre, lambido, sem talento… Nos retratos, nenhuma figura bela, interessante: faces largas, olhos espantados. Lialikov, o pai de Lisa, tinha a testa baixa e um ar satisfeito; o uniforme ficava-lhe como uma espécie de saco sobre o corpo grande e vulgar; no peito uma medalha e a insígnia da Cruz Vermelha. Cultura estreita, luxo de ocasião, um luxo que não tinha motivos nem vinha a propósito — como aquele uniforme. O brilho dos soalhos irrita, o lustre também; e pensa-se, nem se sabe porquê, na história do comerciante que ia tomar banho de medalha de honra ao pescoço… Na antecâmara havia murmúrios e alguém ressonava suavemente. De súbito, no pátio, ressoaram uns sons agudos, sacudidos, metálicos, que Koroliov nunca tinha ouvido e não soube explicar. Ecoaram na sua alma dum modo bem desagradável e estranho.
— Acho que não ficava aqui por nada deste mundo — pensou ele.
E tornou a folhear a música.
A governante entrou e chamou a meia voz:
— Senhor Doutor, pode vir jantar…?
Koroliov seguiu-a.
A mesa, grande, estava coberta de aperitivos e de vinhos; mas só havia duas pessoas: ele e Cristina Dmitrievna. Ela bebia madeira, comia depressa e falava contemplando-o pela luneta.
— Os operários estão muito satisfeitos conosco. Todos os invernos dão nesta fábrica espetáculos em que eles próprios representam. Há também, naturalmente, conferências com projeções, uma sala de chá magnífica; e tudo o mais… Têm muita dedicação por nós; quando souberam que a Lisaunka estava pior, mandaram fazer umas rezas. São pouco instruídos mas têm muito bons sentimentos.
— Parece que não há nenhum homem em casa, não?
— Nenhum. Piotre Nikanorytch morreu há ano e meio e ficamos sozinhas. Vivemos as três, no Verão aqui, no Inverno em Moscow. Já estou nesta casa há onze anos. É como se estivesse em minha casa.
Serviram esturjão, croquetes de frango e uma compota. Os vinhos eram caros, vinhos de França.
— Faça favor, Senhor Doutor… Não faça cerimônias… Coma — dizia Cristina Dmitrievna comendo e limpando a boca à mão (via-se que estava realmente à vontade). Faça favor de comer.
Depois do jantar, levou o médico a um quarto onde lhe tinham preparado uma cama. Mas não tinha sono; o quarto era quentíssimo e cheirava a tintas; vestiu o sobretudo e saiu.
Fora, havia fresco. Já havia um prenúncio de alvorada e, no ar úmido, desenhavam-se os cinco edifícios, com as chaminés, os barracões e os armazéns. Como era domingo, não se trabalhava; as janelas estavam escuras e só duas, num dos edifícios onde ainda estava aceso um forno, pareciam incendiadas; de quando em quando, saía lume pela chaminé, de mistura com o fumo. Ao longe, para lá do pátio, coaxavam rãs e um rouxinol cantava.
Ao olhar os casarões da fábrica e as barracas dos operários, Koroliov voltou aos seus pensamentos do costume. Tinham-se instituído espetáculos para os operários, projeções, médicos privativos, toda a espécie de melhoramentos: mas os operários que ele vira de tarde, na estrada, em nada diferiam dos que tinha visto na sua infância, quando não havia para eles nem espetáculos, nem melhoramentos.
Era médico e tinha sido obrigado a fazer uma ideia exata das doenças crônicas, cuja causa inicial é incompreensível e incurável; considerava do mesmo modo as fábricas como um equívoco cujas causas são também obscuras e inelutáveis. Todos os melhoramentos da sorte dos operários não lhe apareciam, claro, como supérfluos, mas comparava-os ao tratamento das doenças incuráveis.
— Há certamente um engano nesta coisa toda… — pensou olhando as janelas purpúreas. Mil e quinhentos ou dois mil operários trabalham sem descanso, num ambiente insalubre, para fabricarem péssima chita. Vivem na fome e só de tempos a tempos a taberna os liberta do pesadelo. Uma centena de pessoas vigia-lhes o trabalho e a vida destes contramestres passa-se a aplicar multas, a proferir injúrias e a cometer injustiças. E só duas ou três pessoas, chamadas patrões, aproveitam com os lucros, apesar de não trabalharem e de terem desprezo pela chita ordinária. Mas que lucros! E de que maneira os aproveitam! A Lialikov e a filha são umas infelizes e mete pena vê-las. Só a solteirona, a estúpida Cristina Dmitrievna vive à vontade! E trabalha-se numa fábrica destas, com cinco oficinas, e vende-se má chita nos mercados do Oriente, para que uma Cristina Dmitrievna possa comer esturjão e beber madeira.
De repente, repetiram-se os sons estranhos que Koroliov tinha notado antes do jantar. Perto de um dos edifícios, alguém batia numa placa metálica e logo amortecia a ressonância, de modo que os sons eram breves, ásperos, mal definidos, qualquer coisa como «dê… dê.. dê…». Depois, meio minuto de silêncio. E, perto do outro edifício, outros sons sacudidos, mas mais baixos, graves: «dran… dran… dran…».
Repetiram-nos onze vezes. Eram, evidentemente, os guardas a darem as onze horas. Junto do terceiro edifício, ouviu-se: «jak… jak… jak…». A mesma coisa diante de cada um dos edifícios, depois por detrás das barracas e às portas.
Parecia que, na calma da noite, os sons eram produzidos por um monstro de olhos de púrpura: o próprio Diabo, que era aqui o senhor de patrões e de operários e que a uns e outros enganava.
Koroliov saiu para os campos.
— Quem está aí? — gritaram-lhe, com voz grosseira.
— Exatamente como numa prisão — pensou ele.
E não respondeu nada.
Fora, ouviam-se melhor os rouxinóis e as rãs. Sentia-se o cheiro da noite de Maio. Da estação vinham ruídos de comboios; para outro lado, cantavam galos sonolentos; contudo, a noite estava calma: a natureza dormia pacificamente.
No campo, não longe da fábrica, erguia-se o esqueleto duma casa de toros; ao lado, encontravam-se materiais de construção. Koroliov sentou-se numas tábuas e continuou a pensar.
— Só a governante vive aqui a seu gosto e a fábrica trabalha para a satisfazer. Mas é apenas uma aparência; é uma personagem imaginária: o patrão para quem tudo se faz aqui é o Diabo.
E pensava no Diabo em que não acreditava. E voltava-se para as duas janelas que o lume iluminava.
Parecia-lhe que, por estes olhos de púrpura, o próprio Diabo o olhava: numa palavra, a força desconhecida que estabeleceu as relações entre os fracos e os fortes, o erro grosseiro que nada agora pode emendar. É necessário que o forte impeça o fraco de viver: tal é a lei da natureza. Mas isto não é compreensível e não entra facilmente no espírito senão à luz dum artigo de jornal ou dum manual. No tumultuar da vida quotidiana e no entrelaçar de todos os nadas de que se entretecem as relações humanas, não parece uma lei; é um absurdo lógico, no qual o forte e o fraco são vítimas das suas relações mútuas e se submetem involuntariamente a uma força condutora desconhecida, que reside fora da vida e é estranha ao homem.
Assim pensava Koroliov, sentado sobre as tábuas, invadido pouco a pouco pela impressão de que essa força desconhecida e misteriosa estava realmente perto dele e o contemplava.
Entretanto, o céu a leste empalidecia; os minutos precipitavam-se. Os cinco edifícios da fábrica e as chaminés tinham, sobre o fundo cinzento da madrugada, nessa hora em que não se via alma viva, em que tudo parecia morto, — os edifícios e as chaminés tinham um aspecto especial, diferente do de dia. Esquecia-se por completo que houvesse lá dentro motores a vapor, eletricidade e telefones; mais depressa se pensava nas habitações lacustres e na cidade de pedra; sentia-se a presença de uma força grosseira, inconsciente…
E de novo se ouviu:
— Dê… dê… dê… dê…
Doze vezes.
Depois o silêncio — meio minuto de silêncio -, e, na outra extremidade do pátio:
— Dran… dran… dran…
— É bem desagradável, esta coisa… — pensou Koroliov.
E logo ouviu, num terceiro lugar:
— Jak… jak… jak…
O ruído era sacudido, áspero, exatamente como se estivesse aborrecido.
— Jak… jak…
Para dar a meia-noite foram precisos quatro minutos.
Depois, silêncio completo. E, de novo, a impressão de que tudo estava morto à volta.
Koroliov, depois de estar ainda algum tempo sentado, voltou para casa. Mas ficou ainda muito tempo sem se deitar. Nos quartos vizinhos conversava-se. Ouvia-se o perpassar de pantufas e de pés descalços.
— Será uma crise? — pensou o médico.
Saiu para ir ver a doente. No quarto havia lá muita claridade; na parede da sala tremia um fraco raio de sol, através do nevoeiro da manhã. A porta estava aberta e Lisa sentara-se numa poltrona perto do leito, de roupão, envolta num xale e com os cabelos caídos. Os estores das janelas estavam corridos.
— Como se sente? — perguntou-lhe Koroliov.
— Obrigada…
Tomou-lhe o pulso, depois arranjou-lhe os cabelos que tinha sobre a testa.
— Não dorme? Está um tempo limpo, é a Primavera… Lá fora cantam os rouxinóis, e a Menina fica aí sentada, às escuras, a pensar não se sabe em quê…
Ela escutava-o e olhava-o. Tinha uns olhos tristes, inteligentes e via-se que queria dizer qualquer coisa.
— Isto dá-lhe muitas vezes? — perguntou ele.
Ela mexeu os lábios e respondeu:
— Muitas vezes… Quase todas as noites me sinto mal. Neste momento, os guardas, no pátio, começaram a dar as duas horas.
Ouviu-se: «Dê… dê…» Lisa teve um sobressalto.
— Estes sons incomodam-na? — perguntou o médico.
— Não sei… — respondeu ela, refletindo — . . aqui tudo me incomoda, tudo me aborrece. Sinto compaixão na sua voz; pareceu-me desde o primeiro minuto, não sei porquê, que consigo podia falar de tudo…
— Fale, faça favor.
— Vou dar-lhe a minha opinião. Parece-me que não estou doente, mas atormento-me e tenho medo porque isto tem que ser assim e não pode ser de outra maneira. O ser mais saudável não pode deixar de inquietar-se quando um bandido lhe ronda a porta. Têm todos os cuidados comigo — continuou baixando os olhos e sorrindo timidamente. Estou muito reconhecida e não contesto a utilidade da medicina; mas desejaria falar, não com um médico, mas com alguém que estivesse perto do meu espírito: um amigo que me compreendesse e me demonstrasse que tenho ou não tenho razão.
— Não tem amigos?
— Sinto-me só… Tenho minha mãe e gosto dela. Mas sinto-me só. Calhou assim a minha vida… Quem está só lê muito, mas fala pouco e ouve pouco também; a vida é-lhe misteriosa. É-se místico e vê-se o Diabo onde ele não está; a Tamara de Lermontov era só e via o Demônio.
— Lê muito?
— Muito. Tenho todo o tempo livre, de manhã à noite. De dia leio, à noite tenho a cabeça vazia; em lugar de ideias, passam-me vagas sombras…
— Vê qualquer coisa de noite? — perguntou Koroliov.
— Não… mas sinto.
Sorriu de novo e levantou os olhos para o médico. O seu olhar era cheio de melancolia e cheio de inteligência. Pareceu a Koroliov que Lisa tinha confiança nele, lhe queria falar sinceramente e tinha pensamentos semelhantes aos seus. Mas ela calara-se e esperava talvez que ele falasse.
E sabia bem o que tinha a dizer-lhe. Era evidente que se tornava necessário que ela abandonasse o mais depressa possível os cinco edifícios da fábrica e o seu milhão, se acaso o tinha, e deixasse aquele Diabo que de noite a olhava. Era igualmente claro para Koroliov que ela também o pensava e que esperava que lho dissesse alguém em quem ela tivesse confiança.
Mas o médico não sabia por onde começar… Como havia de ser?… É difícil perguntar aos condenados por que razão os condenaram; e é também aborrecido perguntar aos ricos por que motivo têm necessidade de tanto dinheiro; por que fazem tão mau uso da sua riqueza, por que não a deixam, mesmo quando vêem que aí reside a sua infelicidade… E se se começa a falar disto a conversação é geralmente embaraçada e longa.
— Como hei de dizê-lo? — pensava Koroliov. — E será preciso?
E disse o que queria, não diretamente, mas com uns desvios:
— A Menina está descontente da sua situação de proprietária de fábrica e de herdeira rica; não acredita nos seus direitos e não dorme. É seguramente melhor do que se estivesse satisfeita e dormisse profundamente pensando que tudo vai bem. A sua insônia é respeitável e, seja o que for, é bom sinal. Com seus pais seria impossível uma conversa semelhante àquela que hoje temos aqui. De noite, não conversavam, dormiam profundamente; mas nós, os desta geração, dormimos mal. Preguiçamos, falamos muito, e consideramos continuamente se temos ou não temos razão. Para os nossos filhos e para os nossos netos já essa questão estará resolvida. Verão mais claro do que nós. Dentro de cinquenta anos, a vida será bela; é pena que não possamos viver até lá. Devia ser bem interessante…
— Que farão então os nossos filhos e os nossos netos? — perguntou Lisa.
— Não sei… Talvez deixem tudo e partam…
— Para onde?
— Para onde? Mas para onde quiserem — disse Koroliov a rir-se. — Há poucos lugares para onde possa ir um homem bom e inteligente?
Olhou para o relógio.
— Já nasceu o Sol. É tempo que durma. Dispa-se e repouse à vontade. Tenho muito prazer em a ter conhecido — disse-lhe ele, apertando-lhe a mão. — É interessante e simpática. Boa noite!
Voltou para o quarto e deitou-se.
No dia seguinte de manhã, quando trouxeram o carro, toda a gente veio acompanhar o médico à porta. Lisa, de vestido branco como num dia de festa, tinha uma flor nos cabelos. Pálida, lânguida, contemplava Koroliov, como de noite, com ar triste e inteligente. Sorria e falava sempre com a mesma expressão de lhe querer dizer alguma coisa de particular, de grave, alguma coisa que fosse só para ele. Ouviram-se as cotovias cantar, os sinos tocavam. As janelas da fábrica brilhavam alegremente. Ao atravessar o pátio e enquanto o conduziam à estação, Koroliov já não pensava nos operários nem nas habitações lacustres, nem no Diabo. Pensava no tempo, já talvez próximo, em que a vida seria tão luminosa e alegre como essa manhã calma de Maio. E pensava em como era agradável, em semelhante manhã de Primavera, viajar num bom carro, com os seus três cavalos, e aquecer-se ao sol.
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