quinta-feira, 29 de junho de 2017

A SEMENTE DE RACHEL, Leal Kostav

A SEMENTE DE RACHEL
                                         Leal Kostav

                                                  Não sei dizer, se me perguntassem hoje, quantos livros tenho mal dispostos em onze estantes distribuídas por toda a casa. A bem da verdade, ainda não os li todos e não sei quando os lerei e se os lerei. Todos, na real, não vai ser possível , ainda mais agora com essa mania de ler as obras sublinhando trechos e destacando frases.  Não é de  agora essa mania, a de ler  com lápis à mão.  Vou sublinhando uma palavra aqui, uma frase ali, como se, ao final, livro aberto ,eu pudesse dizer, como um perito legista: “dissequei o corpo e aqui restaram os órgãos vitais que o animaram por tanto tempo” ou, como diria talvez um poeta: “sobre esses  riscos movimenta-se a alma desta obra.” Mas o que me levou a gostar de livros, a fazer da leitura momentos de prazer e reflexão e, ao mesmo tempo, um encontro com a liberdade? Para um menino acostumado ao cheiro forte da fumaça das coivaras no roçado, ao preparo da terra para o plantio do feijão, do arroz e do milho, enquanto esperava o tempo da colheita e que, nesse intervalo, a maior caneta que utilizou foi o cabo grosso e pesado da enxada, gostar de livros seria tão impossível como encontrar luz no drama dos humildes. Naquelas condições de vida, só mesmo uma história nascida da ficção faria alguém acreditar que o menino da roça, quase analfabeto, encontraria, na leitura, o seu maior tempero da vida.
                                             Em  histórias de amor há sempre (ou quase sempre) a presença  de uma mulher. E, nesta, a da minha paixão pela leitura, ela, a mulher ­– e não é uma  qualquer – não poderia faltar. E lá na roça, entre Porto Grande e a Fazenda Campo Verde, depois da vila Porto Platon, no então Território Federal do Amapá, foi plantada uma semente diferente das sementes que eu conhecia: a semente que Rachel de Queiroz ( 17 de novembro de 1910 – 4 de novembro de 2003) plantou em mim pelas mãos de meu pai, através da Última Página da revista O Cruzeiro. Eu, então, teria lá meus 10, 11 anos.
                                            Ainda lembro do banco em que eu saboreava com os olhos cada frase de  Rachel de Queiroz – um tronco de árvore de acapu, madeira de lei resistente ao tempo. Sentado no  banco   de madeira bruta, debaixo de uma mangueira, no meio do imenso quintal,  eu lia O Cruzeiro, a revista que chegava ao meu pai não sei por mãos de quem. Eram revistas antigas, às vezes antigas de meses.  Certeiro, ia logo na Última Página, onde a autora de O Quinze, de João Miguel, de As Três Marias e de Memorial de Maria Moura, a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, me conduzia a um mundo de encanto às vezes , de dureza outras e que só hoje eu sei o que era: prazer estético. Começava, ali, uma transformação, a do menino leitor, seduzido pela cronista para a leitura de livros. Bem-aventurado sou por um dia ter cruzado o meu caminho essa mulher, bendita Rachel de Queiroz.
                                        Pois bem, naquele fim de mundo, grotão perdido   na periferia do Brasil, o verbo de Rachel me encantou. O estilo leve de seus textos, as histórias muito bem contadas e estruturadas às vezes como contos, formavam as crônicas que eu lia , sempre nos finais de tarde, após o trabalho na roça, na paz e no silêncio da mata. Hoje, estou aqui, deixando o tempo rolar nestas mal traçadas, para lembrar que, sempre que posso, volto às crônicas de Rachel, “no silêncio ou na insônia da noite.”


A Crônica - um gênero dos tempos modernos

A Crônica - um gênero dos tempos modernos
     


Toda crônica é, entre outras coisas, um relato ou comentário de fatos corriqueiros do cotidiano, o restante depende do olhar de cada um... Ela é publicada primeiramente em jornais, depois cada autor seleciona as melhores, as mais universais e
montam seus livros com elas. É um gênero dos tempos modernos, de leitura rápida, que se adapta bem à Internet.
A crônica nasce nos jornais, mas nasce da necessidade de olhar o mundo de forma pessoal, subjetiva. Contrapõe-se à exigência de objetividade nas notícias e de imparcialidade no registro de fatos, que é a alma do jornal. Ao contrário de tal objetividade pretendida na maior parte das matérias jornalísticas, a crônica tem um olhar minucioso, particular sobre os fatos e acontecimentos. É o olhar que estranha o mundo, que vê o detalhe, o aparentemente descartável.
Esse gênero procura humanizar o mundo, procura dar sentido à realidade aparentemente caótica, resgatando a singularidade do sujeito num mundo em que as pessoas parecem peças de uma grande máquina. Procura a grandeza dos pequenos gestos  despercebidos. Como afirma Antonio Candido,“a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas.”
Nesse olhar são inesgotáveis os temas de que ela pode tratar. Sem tentar esgotar as possibilidades, podem ser destacadas algumas áreas temáticas privilegiadas pela crônica.  
Devido à sua própria origem, muitas vezes os cronistas partem das notícias de jornal para construir suas crônicas. Assuntos de diversas áreas, como política, sociedade, cultura, economia podem provocar comentários e evocar lembranças. É comum criar verdadeiras narrativas, construindo personagens e imaginando detalhes para os fatos
apresentados na mídia ou construir redes de intertextualidade ao relacionar diversos fatos
publicados na mídia com outros, originários de outros suportes. 
Outras vezes, como contraponto às abordagens a partir da urbanidade e da atualidade, presentes nos diferentes assuntos tratados no jornal, as crônicas procuram tratar de outro espaço e tempo, evocando experiências da infância e dos espaços rurais.
Muitos cronistas, como Rubem Braga e Fernando Sabino, que tiveram uma infância em cidades longe das metrópoles, declaram seu estranhamento diante do mundo urbano, agitado, moderno, em que tudo flui com extrema rapidez.
Mesmo no tempo presente, muitos textos buscam dar valor aos detalhes não percebidos na vida urbana, outros buscam também valorizar o cotidiano, enxergar o lirismo presente no cotidiano. Cria-se assim uma verdadeira poesia do cotidiano, materializada pelo foco pessoal do cronista e pela articulação da palavra.
A aparente gratuidade da crônica é representada por uma linguagem marcada por um estilo coloquial, bem próximo da oralidade, algumas vezes sem respeitar as determinadas convenções da norma culta da língua. Ao mesmo tempo, é um trabalho criativo sobre os recursos linguísticos, na medida em que a palavra é trabalhada em jogos de palavras, em diálogos ágeis e significativos na construção dos personagens e do enredo ou em comentários e digressões. O humor crítico e a ironia podem estar presentes nesses textos reinterpretando determinados fatos ou detalhes dos acontecimentos que passam despercebidos pelo leitor apressado dos jornais.
Em relação à organização textual, a crônica moderna pode assumir diferentes configurações: por vezes tem estrutura narrativa que a aproxima do conto; outras vezes se aproxima de uma dissertação, ao centralizar-se mais em uma exposição explícita de opiniões, comentários e reflexões sobre alguma questão ou tema atual, sem preocupação em contar uma história. Mas outras configurações “mistas” podem ser adotadas em função do tema e do estilo do autor. Assim, o cronista coloca-se como prosador do cotidiano e da atualidade, constrói seu texto em configurações com menor grau de rigidez e numa linguagem menos formal em relação a outros gêneros presentes no jornal.


 

Referência: SÁ, J. de. A crônica. 3.ed. São Paulo: Ática, 1987. 

domingo, 25 de junho de 2017

Casamento, Adélia Prado

Casamento
(Adélia Prado)



Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Cantiga para não morrer (Ferreira Gullar)

Cantiga para não morrer
(Ferreira Gullar)



Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento
.

Amor é fogo que arde sem se ver, (Luís Vaz de Camões)

Amor é fogo que arde sem se ver
(Luís Vaz de Camões)


Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.


Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Beauty, Elinor Wylie



Say not of Beauty she is good,
Or aught but beautiful,
Or sleek to doves’ wings of the wood
Her wild wings of a gull.
Call her not wicked; that word’s touch
Consumes her like a curse;
But love her not too much, too much,
For that is even worse.
O, she is neither good nor bad,
But innocent and wild!
Enshrine her and she dies, who had
The hard heart of a child.
Elinor Wylie was born in Somerville, New Jersey, on September 7, 1885. Her collections of poetry include Black Armour (George H. Doran Company, 1923) and Angels and Earthly Creatures (Alfred A. Knopf, 1929). She died on December 16, 1928.

About This Poem


“Beauty” was published in Nets to Catch the Wind(Harcourt, Brace and Company, 1921).

If space and time, as sages say,
    Are things which cannot be,
The fly that lives a single day
    Has lived as long as we.
But let us live while yet we may,
    While love and life are free,
For time is time, and runs away,
    Though sages disagree.

The flowers I sent thee when the dew
    Was trembling on the vine,
Were withered ere the wild bee flew
    To suck the eglantine.
But let us haste to pluck anew
    Nor mourn to see them pine,
And though the flowers of love be few
    Yet let them be divine.
https://mg.mail.yahoo.com/neo/launch?.rand=edopve8n8uapv#3659532992