A SEMENTE DE RACHEL
Leal Kostav
Não sei dizer, se me perguntassem hoje, quantos livros tenho mal
dispostos em onze estantes distribuídas por toda a casa. A bem da verdade,
ainda não os li todos e não sei quando os lerei e se os lerei. Todos, na real,
não vai ser possível , ainda mais agora com essa mania de ler as obras
sublinhando trechos e destacando frases. Não é de agora essa mania,
a de ler com lápis à mão. Vou sublinhando uma palavra aqui, uma
frase ali, como se, ao final, livro aberto ,eu pudesse dizer, como um perito
legista: “dissequei o corpo e aqui restaram os órgãos vitais que o animaram por
tanto tempo” ou, como diria talvez um poeta: “sobre esses riscos
movimenta-se a alma desta obra.” Mas o que me levou a gostar de livros, a fazer
da leitura momentos de prazer e reflexão e, ao mesmo tempo, um encontro com a
liberdade? Para um menino acostumado ao cheiro forte da fumaça das coivaras no
roçado, ao preparo da terra para o plantio do feijão, do arroz e do milho,
enquanto esperava o tempo da colheita e que, nesse intervalo, a maior caneta que
utilizou foi o cabo grosso e pesado da enxada, gostar de livros seria tão
impossível como encontrar luz no drama dos humildes. Naquelas condições de
vida, só mesmo uma história nascida da ficção faria alguém acreditar que o
menino da roça, quase analfabeto, encontraria, na leitura, o seu maior tempero
da vida.
Em histórias de amor há sempre (ou quase sempre) a presença de uma
mulher. E, nesta, a da minha paixão pela leitura, ela, a mulher – e não é uma
qualquer – não poderia faltar. E lá na roça, entre Porto Grande e a
Fazenda Campo Verde, depois da vila Porto Platon, no então Território Federal
do Amapá, foi plantada uma semente diferente das sementes que eu conhecia: a
semente que Rachel de Queiroz ( 17 de novembro de 1910 – 4 de
novembro de 2003) plantou em mim pelas mãos de meu pai, através da Última
Página da revista O Cruzeiro. Eu, então, teria lá meus 10, 11 anos.
Ainda lembro do banco em que eu
saboreava com os olhos cada frase de Rachel de Queiroz – um tronco de
árvore de acapu, madeira de lei resistente ao tempo. Sentado no banco
de madeira bruta, debaixo de uma mangueira, no meio do imenso
quintal, eu lia O Cruzeiro, a revista que chegava ao meu pai não sei por
mãos de quem. Eram revistas antigas, às vezes antigas de meses. Certeiro,
ia logo na Última Página, onde a autora de O Quinze, de João Miguel, de As Três
Marias e de Memorial de Maria Moura, a primeira mulher a ocupar uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras, me conduzia a um mundo de encanto às vezes , de
dureza outras e que só hoje eu sei o que era: prazer estético. Começava, ali,
uma transformação, a do menino leitor, seduzido pela cronista para a leitura de
livros. Bem-aventurado sou por um dia ter cruzado o meu caminho essa mulher,
bendita Rachel de Queiroz.
Pois
bem, naquele fim de mundo, grotão perdido na periferia do
Brasil, o verbo de Rachel me encantou. O estilo leve de seus textos, as histórias
muito bem contadas e estruturadas às vezes como contos, formavam as crônicas
que eu lia , sempre nos finais de tarde, após o trabalho na roça, na paz e no
silêncio da mata. Hoje, estou aqui, deixando o tempo rolar nestas mal traçadas,
para lembrar que, sempre que posso, volto às crônicas de Rachel, “no silêncio
ou na insônia da noite.”