Eficiência Militar
– Conto de Lima Barreto
(Historieta Chinesa)
LI-HU ANG-PÔ, vice-rei de Cantão, Império da
China, Celeste Império, Império do Meio, nome que lhe vai a calhar, notava que
o seu exército provincial não apresentava nem garbo marcial, nem tampouco, nas
últimas manobras, tinha demonstrado grandes aptidões guerreiras.
Como toda a gente sabe, o vice-rei da província
de Cantão, na China, tem atribuições quase soberanas. Ele governa a província
como reino seu que houvesse herdado de seus pais, tendo unicamente por lei a
sua vontade.
Convém não esquecer que isto se passou, durante o
antigo regímen chinês, na vigência do qual, esse vice-rei tinha todos os
poderes de monarca absoluto, obrigando-se unicamente a contribuir com um
avultado tributo anual, para o Erário do Filho do Céu, que vivia refestelado em
Pequim, na misteriosa cidade imperial, invisível para o grosso do seu povo e
cercado por dezenas de mulheres e centenas de concubinas. Bem.
Verificado esse estado miserável do seu exército,
o vice-rei Li-Huang-Pô começou a meditar nos remédios que devia aplicar para
levantar-lhe o moral e tirar de sua força armada maior rendimento militar.
Mandou dobrar a ração de arroz e carne de cachorro, que os soldados venciam.
Isto, entretanto, aumentou em muito a despesa feita com a força militar do
vice-reinado; e, no intuito de fazer face a esse aumento, ele se lembrou, ou
alguém lhe lembrou, o simples alvitre de duplicar os impostos que pagavam os
pescadores, os fabricantes de porcelana e os carregadores de adubo humano –
tipo dos mais característicos daquela babilônica cidade de Cantão.
Ao fim de alguns meses, ele tratou de verificar
os resultados do remédio que havia aplicado nos seus fiéis soldados, a fim de
dar-lhes garbo, entusiasmo e vigor marcial.
Determinou que se realizassem manobras gerais, na
próxima primavera, por ocasião de florirem as cerejeiras, e elas tivessem lugar
na planície de Chu-Wei-Hu – o que quer dizer na nossa língua : “planície dos dias
felizes”. As suas ordens foram obedecidas e cerca de cinqüenta mil chineses,
soldados das três armas, acamparam em Chu-Wei-Hu, debaixo de barracas de seda.
Na China, seda é como metim aqui.
Comandava em chefe esse portentoso exército, o
general Fu-Shi-Tô que tinha começado a sua carreira militar como puxador de
tílburi em Hong-Kong. Fizera-se tão destro nesse mister que o governador inglês
o tomara para o seu serviço exclusivo.
Este fato deu-lhe um excepcional prestígio entre
os seus patrícios, porque, embora os chineses detestem os estrangeiros, em
geral, sobretudo os ingleses, não deixam, entretanto, de ter um respeito
temeroso por eles, de sentir o prestígio sobre-humano dos ” diabos vermelhos” ,
como os chinas chamam os europeus e os de raça européia.
Deixando a famulagem do governador britânico de
Hong-Kong, Fu-Shi-Tô não podia ter outro cargo, na sua própria pátria, senão o
de general no exército do vice-rei de Cantão. E assim foi ele feito,
mostrando-se desde logo um inovador, introduzindo melhoramentos na tropa e no
material bélico, merecendo por isso ser condecorado, com o dragão imperial de
ouro maciço. Foi ele quem substituiu, na força armada cantonesa, os canhões de
papelão, pelos do Krupp; e, com isto, ganhou de comissão alguns bilhões de taels,
que repartiu com o vice-rei. Os franceses do Canet queriam lhe dar um pouco
menos, por isso ele julgou mais perfeitos os canhões do Krupp, em comparação
com os do Canet. Entendia, a fundo, de artilharia, o ex-fâmulo do governador de
Hong-Kong.
O exército de Li-Huang-Pô estava acampado havia
um mês, nas “planícies dos dias felizes”, quando ele se resolveu a ir
assistir-lhe as manobras, antes de passar-lhe a revista final.
O vice-rei, acompanhado do seu séquito, do qual
fazia parte o seu exímio cabeleireiro Pi-Nu, lá foi para a linda planície,
esperando assistir a manobras de um verdadeiro exército germânico. Antegozava
isso como uma vítima sua e, também, como constituindo o penhor de sua
eternidade no lugar rendoso de quase rei da rica província de Cantão. Com um
forte exército à mão, ninguém se atreveria a demiti-lo dele. Foi.
Assistiu as evoluções com curiosidade e atenção.
A seu lado, Fu-Shi-Pô explicava os temas e os detalhes do respectivo
desenvolvimento, com a abundância e o saber de quem havia estudado Arte da
Guerra entre os varais de um cabriolet.
O vice-rei, porém, não parecia satisfeito. Notava
hesitações, falta de élan na tropa, rapidez e exatidão nas evoluções e pouca
obediência ao comando em chefe e aos comandados particulares; enfim, pouca eficiência
militar naquele exército que devia ser uma ameaça à China inteira, caso
quisessem retirá-lo do cômodo e rendoso lugar de vice-rei de Cantão. Comunicou
isto ao general que lhe respondeu :
– É verdade o que Vossa Excelência
Reverendíssima, Poderosíssima, Graciosíssima, Altíssima e Celestial diz; mas os
defeitos são fáceis de remediar.
– Como? perguntou o vice-rei.
– É simples. O uniforme atual muito se parece com
o alemão: mudemo-lo para uma imitação do francês e tudo estará sanado.
Li-Huang-Pô pôs-se a pensar, recordando a sua
estadia em Berlim, as festas que os grandes dignatários da corte de Potsdam lhe
fizeram, o acolhimento do Kaiser e, sobretudo, os taels que recebeu de
sociedade com o seu general Fu-Shi-Pô… Seria uma ingratidão; mas… Pensou ainda
um pouco; e, por fim, num repente, disse peremptoriamente:
– Mudemos o uniforme; e já!
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