a vida é uma brasa, mora?
Caio Fernando Abreu
O Estado de S.Paulo -
06/5/1986
Nuvens
radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes! Terroristas líbios,
uma colagem de Vicente Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks
no metrô, copos de vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na
Liberdade, trocar lençóis na sexta, Anjelica Huston de chapéu negro, aquele
olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB referindo-se aos
"esfuzian- tes-anos-80" (?), cortes na seleção, leves paranóias, mas
eu sei onde estou metido, gangues juvenis, a frase de Beckett dando voltas na
cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma dor—isso é que é maravilhoso, velhinhos
tocando Olhos negros no Brahma, cartão-postal de Paris na cabeceira, tons
dourados, folhas mortas, como te amei e não disse, Giovanni guilhotinado por
amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta, talvez
desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento
& inexorável o começo do fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com
Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me
chamando de "tiete-bem-pensante" (?), mas não pensem que não sei onde
estou metido, pessoas cirandando em torno de um poste, madrugada de sábado no
Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no
braço, muito busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar
Freire, Bruna Lombardi, Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância,
só porque sei onde estou metido, outra vítima de aids, parem de me testar: sou
legal, cara, pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina
joga-se pela janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu-te-amo?
Patrícia em prantos ao telefone, de pura transgressão beber litros de água
mineral em pleno Madame Satã, quem me seduz? Olhar com medo, olhar com perdão,
olhar com interesse, olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender
nada de onde se está desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar,
Rê Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer de comprar gilete
G-II, que falta faz Ana C., meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do
Aurelião, repetir fascinado me- tâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias
desenfreadas, tudo o que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos
solicitando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto,
ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não
pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde estou metido, uma carta
que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca pro anjo da
guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira,
sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va não, meu caro: honestidade, epidemias, vírus,
pestes, dengues, devia vender mais caro minh'alminha inestimável, Toninho ameaçado
pelos skinheads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã de manhã,
saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém
desconhecido, investigar preço de secretária eletrônica, ter certeza de que em
algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre,
querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui
para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último
hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jantar na tua casa, bota
Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado,
irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino,
companheira, empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado
mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega,
let it be, let it be, baby, que la vie, em rose ou em black no duro — é sempre
uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto
a mim, querida, querido, queridos—eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei
muitíssimo bem onde estou metido.
http://semamorsoaloucura.blogspot.com.br
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