Livraria
de Antigamente
Otto Lara Resende
Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio
Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E
citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no
andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar
lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado —
esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar
desse prédio, ficavam a redação e a oficina d’O Globo. Ali, Callado começou a
sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo
Machado, antes de passar ao “Correio da Manhã” e de ir para a Inglaterra
trabalhar na BBC durante a guerra.
A referência à Freitas Bastos presumo que esteja
ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d’O Globo. por onde
passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à
editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo
intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de
Callado, Ênio lançou a 1ª edição de “Quarup”. Como autor, também eu passei pela
Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados
Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.
Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia
estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande
estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se
refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a
livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o
erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma
novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da
remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros.
Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de ideias e de
fuxicos.
Não sei se há uma história das livrarias do Rio.
Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e
em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No
caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as
livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras.
Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de
Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se
tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na
mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava
o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.
A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei
me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência,
leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos.
Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930,
instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo.
Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena
e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço
comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo
da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai
tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em
particular para Argentina, Chile e México.
Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu
foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade
financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno,
todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o
Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência,
com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que
cair com o dinheiro, mesmo a prestação.
Quando submarinos nazistas afundaram navios
brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de
Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A
livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos
amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito
pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e
contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia
sagrado, que é o livro.
http://contobrasileiro.com.br/livraria-de-antigamente-conto-de-otto-lara-resende/
Nenhum comentário:
Postar um comentário