A poeta e a pedra
por EUCANAÃ FERRAZ | poemas de WISŁAWA SZYMBORSKA
Quando o jornalista quis saber por que ela não publicou mais que 350 poemas ao longo de sua vida, Wisława Szymborska respondeu: “Eu tenho uma lixeira na minha casa.” E ainda: “Eu escrevo à noite. De dia, tenho o hábito irritante de reler o que escrevi para constatar que há coisas que não suportam sequer o teste de uma volta do globo.”
Esse gosto pela autoironia e pela desmitificação também deu a tônica de seu discurso quando da outorga do Prêmio Nobel de Literatura, em 1996. Após se referir aos filmes que tratam de grandes cientistas, músicos e pintores – que trabalham em espaços potencialmente cenográficos e cujos processos de criação têm uma carga dramática reconhecível –, Szymborska concluiria que o ofício do poeta, diferentemente, “não é nada fotogênico. Alguém senta à mesa ou num sofá e olha imóvel a parede, o teto. De vez em quando essa pessoa escreve sete linhas apenas para riscar uma delas quinze minutos depois, e depois mais uma hora se passa, durante a qual nada acontece... Quem poderia assistir a esse tipo de coisa?”.
Pode-se dizer que sua poesia deixa ver algo dessa empresa aparentemente pouco ágil, despojada, contemplativa e doméstica nas imagens em que ressaltam o humor, a ironia, o realismo sutil e um registro coloquial a que não faltam elegância e pudor. A um só tempo, porém, é como se a mesa ou o sofá da poeta, assentados no chão de sua casa na Cracóvia, fossem observatórios dos quais se assistisse a uma encruzilhada de todos os tempos e, por isso mesmo, à anulação de todos eles. Assim, os poemas parecem alumbramentos (termo caro a Manuel Bandeira, que, decerto, guarda algum parentesco com Szymborska), visões privilegiadas, inusitadas, frutos do exercício diário de observação da morte, do amor, dos sonhos, da história e das miudezas cotidianas. Leitores, somos levados para espaços desconhecidos, vemo-nos desamparados, atravessados por sentimentos contraditórios. O poema, no entanto, fala conosco com tal desassombro e numa voz tão baixa que o espaço para onde nos deslocamos parece ser o sofá, a mesa da sala daquela mulher que, como se apenas conversasse, mostra-nos o mundo e seus absurdos. Penso que foi um acerto a Academia Sueca definir Szymborska como “o Mozart da poesia”, acrescentando: “A comparação é justa, tendo em vista sua riqueza de inspiração e a verdadeira facilidade com que suas palavras parecem se encaixar.”
Se o rigor a fazia encher sua lata de lixo, o Nobel não serviu para esvaziá-la. Segundo Clare Cavanagh e Stanisław Barańczak, seus principais tradutores para o inglês, o galardão, ao contrário, causou-lhe um bloqueio, uma espécie de paralisia. Em depoimento ao New York Times, Cavanagh declarou que os amigos da poeta referiam-se ao prêmio como a “tragédia Nobel”.
A premiação foi decisiva para o reconhecimento mundial de Szymborska – embora já tivesse recebido os prestigiosos prêmios Goethe, em 1991, e Herder, em 1995 –, mas em seu país ela já gozava de grande popularidade. Seu tradutor para o italiano, Pietro Marchesani, na introdução ao livro Sól [Sal], registra que, em 1976, uma reunião de poemas sob o títuloWielka liczba [Grande Número] vendeu na Polônia toda a edição – 10 mil exemplares – em apenas uma semana; em 2005, a edição de uma antologia Dwukropek [Dois Pontos] esgotou suas 50 mil cópias em dois meses. Buscando compreender a razão de um gênero sempre restrito a pequenos públicos alcançar tamanho sucesso, Marchesani cita o crítico polonês Ryszard Matuszewski, para quem a poesia de sua compatriota assume “a forma condensada de uma história ou de ensaio em miniatura”, podendo, assim, ser lida de forma diferente da maioria das obras dos poetas contemporâneos, para os quais a fonte de inspiração é uma determinada visão de mundo ou um estado emocional. Para Matuszewski, a escrita de Szymborska, “ao contrário, por um lado obriga a pensar, e por outro, comove”: uma conjugação entre intelecto e emoção que consegue ser inovadora e tradicional.
Ainda quanto à escrita parcimoniosa e ao silêncio pós-Nobel, vale acrescentar que a poeta atuou por muito tempo como prosadora. Já em 1953, ela participava da equipe da revista Życie Literackie [Vida Literária], na qual, de 1967 a 1981, assinou sua própria coluna: “Lektury nadobowiązkowe” [Leituras Não Obrigatórias]. Ali, fiel a seu modo de ver, pensar e escrever, em vez de obras intelectualmente respeitáveis de antemão, resenhava livros “menores”, voltados à trivialidade de temas como culinária, jardinagem, ioga, decoração, inclusive aqueles que hoje chamaríamos de autoajuda. Com isso, mesmo longe dos poemas, a escrita mantinha-se e, com ela, a curiosidade e a reflexão, a concisão e a ironia. Ao comentar, por exemplo, A Terapia do Abraço – em que a autora, Kathleen Keating, descreve diferentes tipos de abraços, ilustrados por imagens de animais, quase sempre ursos –, a resenhista diz a certa altura: “Nós todos sabemos que um gesto repetido muitas vezes torna-se banal e perde o seu significado mais profundo.” O comentário pode ser entendido também como reflexão sobre a linguagem. Afinal, se a lírica de Szymborska recusa a banalidade e o vazio, ela também é um esforço para devolver o poder expressivo ao discurso compartilhado do dia a dia.
A própria poeta terá pensado na banalidade da repetição quando, em 2000, seu rosto, retratado pelo gravador Czesław Słania, seu conterrâneo, apareceu estampado num selo de seu país. Não é difícil imaginar que, discreta, a velha dama tenha achado assustador receber cartas com o seu retrato colado no envelope. Mas é igualmente provável que tenha se divertido com isso.
o Brasil, Szymborska tornou-se mais conhecida há apenas um ano, quando a Companhia das Letras publicou Poemas, reunindo 44 textos, com seleção, introdução e tradução a cargo de Regina Przybycien. O livro, elogiado em resenhas, citado em blogs, sites e redes sociais, foi, sem dúvida, uma espécie de paixão instantânea entre poetas de diferentes gerações.
Tal impacto quase fez esquecer que, por aqui, Wisława Szymborska tivera já poemas esparsos publicados em jornais, revistas e antologias. piauí, na edição de maio de 2007, trouxe nove poemas traduzidos pelo jovem poeta Sylvio Fraga Neto e por Danuta Haczyńska da Nóbrega.
E chama a atenção que entre os tradutores – além da própria Regina Przybycien – estejam Nelson Ascher e Ana Cristina Cesar. É revelador que esses dois poetas, excelentes e tão diferentes entre si, antagônicos mesmo, tenham se ocupado da tradução da polonesa. Para Poesia Alheia: 124 Poemas Traduzidos, Ascher (que assina a orelha do livro editado pela Companhia das Letras) não partiu dos originais, mas de traduções intermediárias, e talvez tenha encontrado naquela escrita a precisão de linguagem que tanto lhe interessa, a contenção emotiva animada pelo olhar agudo, irônico e reflexivo. Ana Cristina trabalhou em parceria com Grazyna Drabik e é provável que suas traduções tenham sido as primeiras de Szymborska publicadas no Brasil, ainda em 1984, nas páginas da revista Religião e Sociedade. Não é difícil imaginar a poeta brasileira vendo-se ali onde ironia e desencanto se encontram e dão voz a um lirismo descarnado, encenado num teatro de grandes intensidades, mas de dimensões mínimas, no qual tudo se converte em objetos íntimos.
Em Portugal, a Relógio D’Água, de Lisboa, lançou,em 1998, Paisagem com Grão de Areia, com tradução de Júlio Sousa Gomes; em 2004, a editora Cavalo de Ferro, também lisboeta, editou a antologia Alguns Gostam de Poesia, que reúne Szymborska e Czesław Miłosz, com seleção, introdução e tradução de Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves, que, dois anos depois, voltariam a traduzi-la num volume intitulado Instante, publicado pela Relógio D’Água.
Não sendo um leitor de polonês, só posso falar dos versos com alguma reserva, pois seria preciso lê-los no original para ouvir seus sons, pausas, ritmos, enfim, o que não é traduzível. Mas devo registrar que encontrei em todas as traduções a que tive acesso a mesma sobriedade, a mesma escrita direta, desataviada e simultaneamente plena de sutilezas. Percebi que os caminhos escolhidos pelos tradutores eram sempre os que vão dar na evidência das coisas, mas também na constante perplexidade.
O poema “Conversa com a pedra”, traduzido por Regina Przybycien, pode ser lido como súmula da poesia de Szymborska. Nele, uma voz, em primeira pessoa, pede a uma pedra insistentemente: “Sou eu, me deixa entrar.” A resposta é sempre negativa: “Sou hermeticamente fechada”, diz a pedra, num diálogo improvável e perturbador. A linguagem nada tem de excepcional e, antes, busca a normalidade da conversa no encontro absurdo entre o humano e o mineral, resultando daí o insólito característico da obra de Szymborska. O poema faz-se numa série de variações que encenam uma mesma procura obsessiva, ou ainda, o desejo permanente de compreender aquilo que desafia os sentidos e a razão. A “pedra” ocupa, portanto, o lugar que cabe a Deus, à morte, ao universo, ao medo, ao desejo, a certas memórias, a tudo que tentamos investigar sem sucesso, a tudo que não sabemos e que, a despeito de nossos esforços, devolve-nos à plena ignorância: “Não tenho porta – diz a pedra.”
Volto ao discurso de recepção do prêmio Nobel, “O poeta e o mundo” (também publicado porpiauí em maio de 2007), no qual Szymborska afirma o alto valor de uma pequena frase: “Eu não sei.” Segundo a poeta, só a consciência do não saber pode nos dar a chance de expandir os horizontes dentro e fora de nós: “Se Isaac Newton nunca tivesse dito para si mesmo ‘eu não sei’, as maçãs em seu pequeno pomar poderiam ter caído no chão como granizo e na melhor das hipóteses ele teria se abaixado para pegá-las e devorá-las com entusiasmo.” Indagar é o destino mais alto do humano e a função mesma da arte, ensina-nos a poesia de Szymborska.
Falar em “ensinamento” não soa estranho no seu universo poético. Um dos poemas publicados nesta edição, em tradução de Henryk Siewierski, chama-se “Exemplo”. Penso que os poemas de Szymborska são muitas vezes “exemplares”, ou seja, encerram algum ensinamento. Mas se, em seus personagens, enredos, desfechos, vislumbramos uma moral, um conjunto de valores, muitas vezes somos surpreendidos vendo-nos a nós mesmos como peças de um universo em que não somos – nós, os humanos – o centro. Assim como a “pedra” guarda para si o seu sentido, deixando-nos de mãos vazias, o “vendaval” e a “árvore” parecem viver paralelamente a nós, movidos por seus próprios destinos. O que chamei de exemplaridade não raro impõe nosso deslocamento num cosmos anterior a nós e que a nós sobreviverá. A natureza é presença constante e a morte é tema central.
Os versos de “Os pensamentos que me visitam nas ruas movimentadas” tratam mais uma vez do trabalho invisível da natureza, das forças que jogam conosco – destino, acaso. Seu humor nasce da descrição hipotética de ordenações em que somos o objeto de um sujeito que desconhecemos. Como diria Bergson, o riso emerge quando, de repente, percebemos o que há de mecânico em nós. O poema suspende a cortina, os cordões aparecem e lá estamos nós como marionetes.
“Ausência” traz o mesmo tema: toda existência parece resultar de uma série de acasos. O poema, contudo, não busca a abstração filosófica nem incorre na prosaica demonstração de uma tese. “Ser” e “não ser” são hipóteses fáceis de reconhecer na mínima trama biográfica erguida pelos versos, em cujo mecanismo, de resto, todos podem se reconhecer: e se meu pai não tivesse se encontrado um dia com minha mãe? Eu não existiria? Quem existiria? Eu não seria eu? A questão parece pueril. Mas a sugestão de que somos frutos do acaso não soa nada infantil.
Um dos versos fala do rosto entre “bilhões de rostos na face da terra”. Nas fotos, Szymborska está sempre sorrindo, ou quase, e os olhos sorriem também. Não há sinais de fadiga ou tédio. Parece sempre curiosa, intensa, doce.
E se sua mãe tivesse se casado com “o senhor Zbigniew B., de Zduńska Wola”? Szymborska não existiria? Vasculho os três fartos volumes do Dictionnaire Universel des Littératures, editado pela PUF em 1994, e, perplexo, descubro que Wisława Szymborska, ali, não existe.
Mas, na internet, as enciclopédias livres, sites e blogs registram data e local de nascimento – 2 de julho de 1923, no antigo vilarejo de Bnin, hoje parte de Kórnik – e dão outras informações. Estudou literatura e sociologia na Universidade Jaguelônica de Cracóvia, não chegando a se formar. Seus dois primeiros livros, publicados em 1952 e 1954, obedecem às sugestões do realismo socialista e em nada anunciam a futura poeta. A verdadeira estreia – segundo a própria Szymborska – aconteceu em 1957, quando veio à luz o volume Wołanie do Yeti [Chamando por Yeti]. Em dezembro de 1975, ainda sob o regime comunista, assinou o Memorial dos 59, em que artistas e intelectuais protestaram contra o projeto de consagrar na Constituição do país a liderança do Partido Comunista e a amizade com a União Soviética.
No último dia 1º de fevereiro, a pedra, enfim, abriu-se a Wisława Szymborska, que passou a fazer parte de um misterioso mundo em que não há palavras.
REVISTA PIAUÍ – Nº 6, Março 2012. Pág. 72-74
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