domingo, 3 de abril de 2011

WALDEMAR HENRIQUE E O TEATRO DA PAZ, por Sebastião Godinho


WALDEMAR HENRIQUE E O TEATRO DA PAZ
By Sebastião Godinho *

     Há 106 anos, num sobrado ainda existente no início da então Rua Nova de Santana, atual Senador Manoel Barata, nascia em 15 de fevereiro – uma quarta-feira de Cinzas - aquele que viria a se tornar o maior compositor paraense de todos os tempos, o genial Waldemar Henrique.
     Não cabe nestas poucas linhas e nem nos parece conveniente, alinhavar seus traços biográficos já tantas vezes explorados nos inúmeros livros, artigos e estudos que escreveram a seu respeito.  Desse modo vamos homenageá-lo trazendo à lume algumas curiosidades em torno de sua atividade pública como Diretor do Teatro da Paz, - que, numa feliz coincidência, também hoje aniversaria -, tendo como partícipe, em algumas delas, este obscuro escrevinhador.
     Waldemar retornou à Belém, após viver 33 anos no Rio de Janeiro, em 12 de abril de 1966.  Veio a convite do governo do Estado assumir a direção do departamento de cultura da Secretaria de Educação e Cultura, meses depois foi designado diretor do Teatro da Paz, em substituição ao dramaturgo e cronista Edgar Proença que havia se aposentado.
     À frente do Teatro, o compositor lançou-se numa autêntica cruzada com o objetivo de reintegrá-lo ao cotidiano cultural da cidade, visto que, sem verba para comprar sequer uma vassoura que fosse, o TP estava há muito tempo sem função, em estado de pré-ruína, literalmente entregue às baratas.
A situação era de tal modo periclitante que um jornalista paraense chegou a sugerir a demolição do prédio para lá ser erguido um campo de futebol, sob o disparatado argumento de que a praça esportiva teria mais utilidade do que um teatro fechado, sem levar em conta a importância arquitetônica e histórica do monumento.
     Para dar maior atenção ao prédio, Waldemar passou a morar num dos camarins do segundo andar das coxias, levando para lá, além de seus pertences de uso cotidiano, um velho piano de estante que trouxe do Rio de Janeiro, onde, vez por outra antes de dormir, tentava mitigar em suas 88 teclas as angústias de um administrador que procurava encontrar a fórmula mágica de tirar leite de pedra e assim realizar o sonho de restaurar o antigo fastígio da casa que dirigia.
     Para tanto arregaçou as mangas e passou a trabalhar diuturna e obstinadamente visando reabrir o mais rápido possível as portas emperradas do velho teatro.  Nessa tarefa gigantesca contou com o apoio dos estudantes da Escola de Teatro da Ufpa, e de componentes de grupos autônomos de teatro que ali passaram a se apresentar levando à cena grandes clássicos da dramaturgia mundial.  E foi por essa época que nasceu o Grupo Experiência, dirigido por essa personalidade a quem o Teatro do Pará muito deve que é Geraldo Sales.  “Tem Muita Goma no Meu Tacacá”, tendo no elenco uma certa Maria de Fátima, que mais tarde viria a se transformar nessa cantora que o Brasil todo aplaude de pé, a nossa querida Fafá de Belém, foi uma das primeiras montagens do “Experiência” a ser encenada ao palco do Teatro da Paz.
     Quando da realização de espetáculos, e como tinha sob o seu comando um número reduzido de servidores, muitas vezes o próprio Waldemar serviu de porteiro do Teatro.  Pouca gente sabe disso.  Um maestro de Manaus chegou a comentar em termos enfáticos pelas colunas da imprensa, que tal fato era uma absurdez inominável, e que só mesmo aqui no Pará isso era possível.
     Criador de imorredouras páginas musicais, onde se destacam as canções inspiradas na mitologia amazônica que recompõem aos nossos ouvidos o mundo fantástico de seres sobrenaturais, seria fácil supor que o autor dessas canções se mostrasse isento de qualquer preconceito, principalmente com relação às coisas do além. Certa feita, num dos nossos cavacos intermináveis, me falou sobre uma aparição que havia visto no palco do Teatro, pouco antes de se deitar.  Era o espectro de uma bailarina que rodopiava na ponta dos pés como se ali estivesse sob os olhos de centenas de espectadores.  Waldemar, íntimo que era dessas almas do outro mundo, não se intimidou com a fluída presença do fantasma, fez-lhe uma reverência, deu um bocejo e foi dormir.
     Em julho de 1976, quando lá fui admitido como servidor, o número de funcionários continuava reduzido, apenas dez ou onze, por aí.  O Teatro, já em melhores condições por obra  e graça de seu Diretor, ainda amargava, contudo, os deletérios efeitos da carência de recursos, que sempre sobeja para um lado em detrimento de outro, principalmente quando esse “outro” diz respeito a atividades culturais.
     Desmentindo a idéia que muita gente poderia fazer acerca de seu relacionamento com os funcionários da Casa, considerando-se a sua reconhecida e apurada polidez, o Maestro – como todos nos, funcionários, reverentemente, o tratávamos – não era bonzinho, não.  Dirigia a velha e querida Casa de Espetáculos com mão de ferro, tanto assim que na hora de aplicar reprimendas e outras penas disciplinares, não passava a mão na cabeça de ninguém, e todos nos que ali prestávamos serviços, seja nos afazeres cotidianos, seja nos espetáculos, tínhamos um medo danado de suas exasperações administrativas - digamos assim - que quase sempre findavam em aplicação de pena de suspensão e, até mesmo, de demissão. 
     Quando admoestava o fazia de forma grave, de cara amarrada, valendo-se sempre das expressões, “vocês estão querendo balançar o coreto”, mas eu não vou deixar, não, antes ponho todo mundo “no olho da rua, seus pilantras”.
     Apesar da dureza dessas frases, lançadas assim, no rosto de todos nos, nenhum se atrevia a retrucar, aceitando passivamente o “carão” de cabeça baixa, submissos.  Na verdade, tínhamos por ele uma verdadeira veneração, a mesma que um filho tem para com o seu pai, havendo, mesmo, alguns funcionários que, entre si, a ele se referiam como “pai”, e até hoje, quando dele se lembram usam o carinhoso substantivo.
     E essa reverência tinha uma razão de ser, era o reconhecimento por sua dedicação, competência e probidade como diretor permanentemente preocupado em solver os inúmeros problemas que diariamente a velha Casa de Espetáculos apresentava.  Éramos todos nos testemunhas de sua incansável luta diária, de domingo a domingo, sem abatimentos. Além disso, afora os momentos em que era obrigado a corrigir as nossas falhas disciplinares, Waldemar era um homem afável e justo, sempre disposto a dar uma palavra de apoio nos momentos em que mais precisávamos, como, de fato, o faria um verdadeiro pai.
     Não tenho dúvida em afirmar tranquilamente que o nosso saudoso Maestro era um ser iluminado, desses que carregam consigo a magia de fascinar todos aqueles que dele se aproximam.  Victor Hugo disse certa vez que há pessoas que têm um sorriso que – ninguém sabe a razão – diminui o peso da cadeia enorme arrastada por todos os seres vivos.  Waldemar era dotado desse poderoso encanto de amenizar as agruras do dia-a-dia de seus circunstantes somente com desenho de seu expressivo e suavizador sorriso.
     Apesar de todas as dificuldades, o incansável diretor conseguiu inaugurar, em 21 de outubro no ano em que assumiu a direção do TP a Galeria “Ângelus” que, lamentavelmente foi extinta, numa autêntica “desomenagem” à sua memória e, principalmente, à memória do artista revolucionário que foi Ângelus Nascimento.
     Também inaugurou em dezembro daquele ano, no foyer do Teatro, a grandiosa exposição “Santos de Santa Maria de Belém do Grão-Pará”, que foi objeto de substancial reportagem, ilustrada com várias fotos, publicada pela revista “O Cruzeiro”, de circulação nacional.
     Dois monumentos da nossa cultura se entrelaçam por desígnios imponderáveis, neste 15 de fevereiro.     Ambos são imortais.  Um, jóia da arquitetura neoclássica, incrustada no coração da cidade, aí permanecerá para sempre; o outro, desaparecido do mundo físico, virou encantado e sobreviverá, de forma igual, através de suas jóias musicais, hoje reconhecidas em todos os quadrantes do globo.
     Numa entrevista a mim concedida, em novembro de 1980, logo após deixar a direção do Teatro da Paz, onde permaneceu por 14 anos, ele revelou.  “Eu estou com vontade de dizer à civilização, basta! e correr para um recôncavo da Ilha do Marajó ou da Vigia, arranjar uma palhoça, uma canoa, uma rede e um violão. (- e a mulher? pergunto eu).  As mulheres de Paris não podem morar em palhoça.  Ganhar de Deus essa eternidade das estrelas, das águas, das nuvens, dos infinitos silêncios.”
O senhor ganhou, Maestro, o senhor ganhou...

(*) Sebastião Godinho é advogado e escritor
Godinhojuris@ig.com.br

Sebastião Godinho é um autor paraense, premiado por diversas obras, como a seguir:

- A FORTALEZA DE N. S. DAS MERCÊS DA BARRA (PLAQUETA)
 - O MONUMENTO A D. FREI CAETANO BRANDÃO (Premiado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura - Prefeitura Municipal de Belém)
 - AVERTANO ROCHA - UM FACHO DE LUZ (Premiado pela Academia Paraense de Letras, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Pará e pelo Conselho estadual de Cultura)
 - SÓ DEUS SABE PORQUE - Fotobiografia de Waldemar Henrique
 - WALDEMAR HENRIQUE DA COSTA PEREIRA (coletânea de artigos publicados)

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