ÁLVARO DE CAMPOS
De meus arquivos dormidos
Álvaro de Campos nasceu no final do século XIX, em Tavira. Engenheiro naval for formação, estudou em Glasgow, na Escócia. Visitou o Oriente mas, desiludido, volta a Portugal, onde tem contato com Alberto Caeiro, que se torna seu mestre. Desperta para o sensacionismo e para o futurismo.
Do Oriente, em Opiário, escreveu:
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
...
Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento
Menos objetivo que o mestre, porém, deixa de lado a sensação plácida de Reis e pura de Caeiro e centra-se sobre o sujeito, caindo no que viria a ser a consciência do absurdo, a experiência do tédio e da desilusão. De tão nervoso e emotivo, por vezes chega à histeria.
Do tédio, em Adiamento:
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Em Tabacaria, define sua desilusão em relação a si mesmo e ao mundo nos versos:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
A poética inventada:
Campos é um poeta que admira a inovação e a criação, a força da modernidade. Transporta esses dados para sua criação poética, em um estilo modernista, definido pela escrita da sensação e do movimento, que pode ser resumido em sentir tudo, de todas as maneiras, em uma ânsia de sentir e de abarcar a complexidade das sensações.
Uma modernidade deslumbrada e descrente, conformada e que quer se inteirar do novo, da sensação do novo. Em Ode Triunfal, Campos escreveu:
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Assim como Ricardo Reis e Alberto Caeiro, a poesia de Álvaro de Campos está reunida no volume Ficções do Interlúdio, lançada pela Companhia das Letras como parte da coleção Fernando Pessoa Definitivo. Nela, não está reunida toda a obra de Campos, o heterônimo mais profícuo de Pessoa, que chega a confundir-se com este em alguns momentos.
O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.
Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.
O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.
Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.
Meu Deus, tanto sono! ...
Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.
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