domingo, 4 de outubro de 2009

Rio, 19 de novembro, por José de Alencar



Rio, 19 de novembro
por José de Alencar

Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.

Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como fêz com as horas, não me veria às vêzes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.

Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e os traços para desenhar o meu original.

Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com uns dias cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos do sol, uma semana elegante de teatros e de bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas, de olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.

Vestiria a minha fada de branco com algumas fitas côr-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse com tôda a graça e travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus instantes.

Ao contrário, se fôsse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem puros e serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de céu azul e de estrêlas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha terra, de faces côr de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.

Então escreveria uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me assim de meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae, quarum pars parva fuit.

É verdade que, quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu procurar um tipo, um modêlo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher, que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir para o caso.

Seu único aspecto (da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um sermão; na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica que se houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a discutir e argumentar.

Com efeito, só êste tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada, a qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma dose de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a população desta côrte da febre de novidades que tem produzido a guerra do Oriente.

Os antigos, porém, que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de personificar a semana, e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.

Aposto que já estais a rir dêste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são êstes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que valham a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.

Ides ver. Em primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e qual como as outras. Dêstes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão belos, tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que vivificava a natureza. As noites foram quase tôdas de inverno e de teatro.

No Provisório estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que devem disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público dilettante está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar a nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas belli causas.

Em São Pedro de Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de entusiasmo e um novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no Brasil.

Infelizmente as circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos, não têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.

É a êste fim que deve presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada destês triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato que todos reconhecem. Como ator, já fêz muito para sua glória individual; é preciso que agora como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de seu país.

Se João Caetano compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as boas lições do seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para êle uma nova época.

O govêrno não se negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso desenvolvimento moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o apoio e a animação da imprensa desta côrte.

Uma das coisas que têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a que será condenado êste edifício, com o qual decerto se deve despender avultada soma. O gôverno não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de criá-los, não havendo elementos dispostos para êsse fim.

Não temos uma companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena onde se representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.

Dêste modo ficamos reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se não preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos tôdas as noites de representação, quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo é muito bom, visto que não há melhor.

Já algumas vêzes temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se podem melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até um elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter tomado de reparar o edifício e iluminá-lo a gás.

A polícia também tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis que se iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam por afugentar dêle os apaixonados da música de batuque.

Não é, porém, ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma fábrica dessa indústria lucrativa.

O crime de moeda falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque ameaça a fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador em ter punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros falsificadores bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.

Todos os dias lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que apregoam postiços de tôdas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes coisas.

Entretanto imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher tôda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde tôda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria.

Quando chegar o momento da decomposição dêste todo mecânico - quando a cabeleira, o ôlho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sôbre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!

Nem ao menos as leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra aquêles que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que cumpre reparar.

Um homem qualquer que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis, falsificada por êle, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aquêles que falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à nossa custa.

Deixemos esta importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o quadro de tôdas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do corpo, mas também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou uma palavra mentida.

Demais, temos ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e que interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua execução para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que corremos todos os dias de encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do hidrófobo.

Afonso Karr levou dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil medida de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e muitas vêzes mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.

Um dos maiores obstáculos que êle encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido das palavras que profere.

Assim, desde a antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o môdelo da amizade.

Êste consentimento unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do homem. O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a tôdas as vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos pés de seu senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama um amigo!

Já se vê que o sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Tôdas estas vãs declamações dos poetas sobre êsse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade, dão uma bem mesquinha idéia do coração humano.

Não é, pois, o prazer de possuir um autômato, que se move a nossa vontade, que pode compensar um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos indiferentemente.

Texto extraído do livro:
Ao correr da pena. José de Alencar. 2ª edição. Edições Melhoramentos. São Paulo. p. 87-92.

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