sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Da arte de nascer e viver, Annibal Augusto Gama


Annibal Augusto Gama
 



Você está instalado confortavelmente no ventre da mãe, que lhe provém de tudo, no morno entorno do útero, e ainda assim, de vez em quando lhe dá uns coices.
Você começou de um ovo, com a união do espermatozóide com o óvulo. A princípio, era uma coisa insignificante, e chegou a ser quase um peixe, com guelras. Foi evoluindo para a forma humana, enquanto a barriga da mãe também estufava cada vez mais.
Até que nove meses depois (ou menos, para alguns apressadinhos), começaram em torno de você uns empurrões para botá-lo para fora, quando não sabia ainda que havia um fora, mas só um dentro. Os empurrões tornaram-se insuportáveis, até que você botou a cabeça para fora, e alguém o agarrou pelo pescoço e pelos ombros e o arrancou do lugar onde você estava antes tão bem.
Este parteiro, ou parteira, ainda por cima, segurando-o pelos pés, dá-lhe umas palmadas na bunda, para que você chore e respire. Foi a primeira agressão que você sofreu, das muitas que receberá ainda durante o resto da vida. Cortaram-lhe então o cordão umbilical e o amarraram, para que você se desligasse de sua mãe, que estava inundada de suor e gemia. Limpado, foi embrulhado e posto nos braços da mãe, que logo lhe ofereceria os seios túrgidos, para que você mamasse.
Mais alguns dias, e você já mama com furor, o leite escorrendo da boca, e ainda dá umas cabeçadas naqueles seios, para que saia mais leite. Depois, outra palmadinha nas costas, e você arrota. É um menino! Ou é uma menina! gritaram as pessoas em torno. E você quase imediatamente recebe um nome que não escolheu, e tão desastrosamente às vezes escolhido, que você o carregará com vergonha pelos anos a fora.
Principia então suportar a burocracia em que estará envolvido durante anos e anos: você vai ser registrado no Cartório das Pessoas Naturais, e batizado numa igreja e numa religião de que nunca ouviu falar.
Ainda bem que, nos primeiros meses, você apenas mame, dorme, chore e desperte. E começa então a enxergar. Vê vultos ao seu redor, e que logo se delinearão, e você reconhece primeiramente a sua mãe, pelo seu cheiro, e pelo calor de seu corpo.
Escuta barulhos, estouros e, para acalmá-lo, metem-lhe um bico de borracha na boca, até, que já mais crescidinho, retiram-lhe o bico, e você vai aprendendo confusamente que a vida é uma negação das coisas de que gostava.
As pessoas então começam a ensiná-lo a falar a sua língua, as palavras. Você aprende o alemão, o francês, o italiano, ou o português, conforme o lugar em que nasceu. Aprende também palavrões, mas imediatamente o repreendem ou lhe dão palmadas, se os repetir.
Você já se arrasta pelo chão e, logo mais, começará a ficar de pé, como os outros. Enquanto isso, inábil, leva tombos.
Já enxerga, fora, as árvores, os passarinhos; vê a chuva que cai; sente o calorão do Verão e o frio do Inverno. Vestem-no de roupa.
Familiariza-se com os bichos, com o cachorro, com o gato, com as galinhas e com o galo. Também, já está comendo, às colheiradas, papinhas, pois o leite dos seios da mãe vai sendo cortado. Recebe presentes, como o ursinho de pelúcia. Recebe também beliscões inexplicáveis. É-lhe imposto saber que existem regras a ser observadas, e que você não o fez. É proibido mijar na cama.
Alguns anos a mais, você é levado à escola, para aprender besteiras. Mais tarde ainda, ouvirá falar do Binômio de Newton, e da hipotenusa.  E terá de se defender dos meninos mais crescidos, que o agridem.
Já então, sabe ler e escrever, e escreve nos muros.
De calças compridas, admoestam-no de que é preciso trabalhar, para viver. E se você recalcitra, exclamam: “Vá trabalhar, vagabundo!” E chegam a botá-lo para fora de casa.
Terá então sabido que existe o sexo. Que você tem um pênis ou uma vagina. Que há o tal de orgasmo, e que é assim também que se fazem os filhos.
Você encontrou uma sociedade já constituída, e um Estado. Está sujeito a ele, à polícia, ao patrão. A ordem é obedecer.
Há também o pecado e outras restrições. Ameaçam-no com o inferno. E há doenças inevitáveis, e o envelhecimento.
E você afinal morre, sem ter aprendido muito bem esta dura arte de viver.

                                             

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Diálogo pós-morte, Fernando Sabino

Diálogo pós-morte- Fernando Sabino

- Alô ?
- Sim.
- Maria ?
- É ela mesma, quem fala ?
- É o José...
- Ah, sim, tudo bem ? Que que aconteceu ? Tá com a voz estranha...
- Eu estou bem sim, mas...não sei como te falar isso...
- Ora, fale logo! Está me deixando preocupada !
- O Joaquim...teu irmão...faleceu essa madrugada...
- Ah meu Deus...
- Ele morreu dormindo, não sentiu nada. Não se preocupe
- ...
- De manhã quando acordamos, não vimos ele lendo o jornal. Estranhamos e fomos ao quarto ver o que havia acontecido. Ele estava deitado, meio encolhido. Parecia mais calmo que nunca.
- Meu Deus...Não nos falávamos há anos ! Vocês já sabem como ou porquê aconteceu ?
- Disseram que o coração parou. Só isso.
- Meu Deus...
- Ele viveu bem. Não passou sequer uma semana doente. Não sofreu. Morreu dormindo. Eu mataria para morrer dormindo e sem sofrer como ele...
- Sim, ao menos isso...morreu dum jeito bom, se é que isso existe.
- O velório será naquele cemitério que o vô de vocês tá enterrado. Nunca lembro o nome daquele lugar.
- Ah, sei onde é.
- Vai ser amanhã às nove da noite.
- Às nove da noite ?
- Sim...
- Não tem como ser mais cedo ?
- Não, aparentemente muita gente morreu e os horários estão reservados.
- Até quando você morre tem que ficar na fila ! Esse mundo...
- É...
- Mas olhe, aquela lanchonete de lá fica aberta até essas horas ?
- Acho que sim.
- Que bom, não agüento essas coisas sem tomar um cafézinho. Sabe como é...
- Sei sim. Então você vai ?
- Acho que sim, tenho que ver se arranjo alguém pra gravar a novela para mim, senão não sei como farei...
- Ah, entendo...
- Até amanhã, filho. Você serviu meu irmão muito bem todos esses anos. Deixou de ser caseiro e virou um irmão. Obrigado.
- Magina, não fiz mais que minha obrigação. Até amanhã

(Desligam os telefones)

- Maldita velha hipócrita...



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